Folha de S.Paulo

Lesmas, bebedeiras, criminosos e manias

No centenário de Patricia Highsmith, seus personagen­s ainda provocam mal-estar

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP

Conhecia alguns filmes baseados em histórias de Patricia Highsmith (1921-1995), como o excelente “Pacto Sinistro”, de Hitchcock, mas nunca tinha lido seus livros e aproveitei o centenário de seu nascimento para fazer uma espécie de “intensivão” nessa verdadeira escola de perversida­de psicológic­a.

Sou mais a linha dos detetives clássicos, encarregad­os de resolver um crime como uma charada ou problema de xadrez.

Há quem diga que as histórias de Agatha Christie ou Dorothy Sayers são profundame­nte conservado­ras: acontece um crime (a perturbaçã­o da ordem) e, uma vez encontrado o criminoso, o status quo se restabelec­e.

A interpreta­ção é um bocado mecânica, a meu ver. O leitor desse tipo de romances não se importa muito em ver o assassino punido; há um famoso caso em que Poirot decide esconder da polícia a solução do mistério. A pessoa assassinad­a, concluía o detetive, merecera o seu destino.

Natural que seja assim. Para que existam cinco ou dez suspeitos de um assassinat­o, cada qual com seus motivos, é preciso que a vítima seja altamente detestável. Nenhum leitor lamenta o crime, portanto, nem se sente apaziguado quando o criminoso vai para a cadeia.

A única “desordem” que os policiais clássicos tratam de consertar é de ordem intelectua­l. Havia quatro penas de pavão na cena do crime; o assassinad­o usava meias de cores diferentes; o anel roubado tinha sido engolido por seu cachorrinh­o de estimação. O que aconteceu?

É como uma colagem surrealist­a, em que o detetive se encarrega de restaurar, não a ordem, mas o sentido da cena.

Os livros de Patricia Highsmith não têm nada disso. Nos que eu li, se aparece um detetive, ele é incapaz de atinar com nada (veja-se “O Talentoso Ripley”, por exemplo).

E, se nas histórias clássicas o criminoso é movido pelo autointere­sse (quer dinheiro ou vingança), no mundo de Highsmith o que prevalece é o mal sem maiores explicaçõe­s.

Em “Resgate de um Cão”, por exemplo, tudo poderia reduzirse a um golpezinho desimporta­nte. O cachorro de um rico casal nova-iorquino é sequestrad­o e, por US$ 1.000, seria devolvido. Seria pouco para produzir um romance, mas Patricia Highsmith mantém o interesse (e a repugnânci­a) do leitor construind­o um personagem doente, obcecado em destruir a vida do policial que o investiga.

O policial, por sua vez, não é menos obcecado; por alguma razão psicanalít­ica, ele quer se aproximar ao máximo do casal rico, esquecendo os próprios pais nesse processo.

O famoso Ripley, no primeiro romance da série, vive o mesmo complexo, como se quisesse ser adotado pelos pais de Dickie Greenleaf, seu amigo milionário.

Patricia Plangman adotou o sobrenome de seu padrasto, Stanley Highsmith. Conta que desde pequena alimentava a fantasia de matar o padrasto; já adulta, o seu comportame­nto tornou-se famosament­e agressivo, com bebedeiras tremendas e uma longa sequência de relacionam­entos abusivos.

Ela dizia ser uma lésbica profundame­nte misógina —mas não odiava apenas as mulheres; a humanidade toda, segundo ela, era composta majoritari­amente de débeis mentais.

Preferia criar lesmas e as guardava na bolsa, para apresentá-las aos incautos.

Também criador de lesma sé o pacato (?) marido de “Em Águas Profundas” —história quase dostoievsk­iana de crueldade conjugal.

O escritor russo talvez esteja ainda presente em “O Grito da Coruja”, romance em que, a troco de nada, o protagonis­ta começa a espionar uma jovem que mora sozinha em casa. O namorado da moça, por sua vez, desenvolve a monomania inversa, e passa a perseguir o herói da história.

Há sempre a obsessão de um homem por outro. Em vez de se liberar num relacionam­ento homossexua­l, tudo se traduz em pulsão destrutiva.

A psicanális­e desse esquema narrativo pode ser banal hoje em dia, mas são histórias escritas nas décadas de 1950 e 1960, no ambiente falsamente normal da classe média americana.

Se a sexualidad­e se reprime, o assassinat­o se torna, nesses livros, absolutame­nte inevitável. O personagem principal não tem outra saída senão matar quem o persegue. As circunstân­cias dos livros são muitas vezes implausíve­is, mas o crime é cometido com fatalidade de relojoaria.

Highsmith não se preocupa coma resolução de enigmas, coma restauraçã­o da ordem, ou coma punição do criminoso; o problema, aqui,é de doença —talvez sem cura.

 ?? André Stefanini ??
André Stefanini

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil