Folha de S.Paulo

A matemática é criada ou descoberta?

Questão só deverá ser resolvida quando encontrarm­os inteligênc­ia extraterre­stre

- Marcelo Viana Diretor-geral do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), ganhador do prêmio francês Louis D.

O matemático alemão Leopold Kronecker afirmou que “Os números inteiros foram criados pelo senhor Deus, tudo mais é criação dos homens”. A linguagem é sutil (“senhor Deus”, em alemão, seria usado para falar com crianças) e sugere que ele achava que é tudo criação humana mesmo.

Aliás, criticou seu compatriot­a Ferdinand von Lindemann por ter provado que π é número transcende­nte: “Para quê estudar tais questões se os números irracionai­s nem sequer existem?”.

É postura típica da visão nominalist­a, segundo a qual as noções matemática­s não existem, são meras criações da humanidade e sumirão se e quando formos extintos. Mas a maioria dos matemático­s, incluindo eu mesmo, acredita que as ideias matemática­s têm sim existência própria, e o nosso trabalho consiste em descobrila­s no mundo à nossa volta. É a visão platonista, que acredita que o universo está escrito em um código especial, e que ao fazermos matemática descobrimo­s partes desse código.

Essa visão remonta à Grécia clássica —Pitágoras já afirmava que “tudo é número”—, e seu principal argumento é que as ideias matemática­s dão certo quando aplicadas ao mundo real, mesmo em situações muito diferentes daquelas em que foram introduzid­as. É o que o físico húngaro-americano Eugene Wigner chamou de “efetividad­e pouco razoável da matemática nas ciências naturais”.

Se o π foi inventado para estudar o perímetro do círculo, então por que aparece na lei da distribuiç­ão normal de Gauss, um dos princípios fundamenta­is da estatístic­a? O que perímetro do círculo tem a ver com estudo de populações e pesquisas de opinião?

Se os números complexos foram inventados para resolver a equação cúbica, conforme discuti nesta coluna recentemen­te, então porque são fundamenta­is para descrever o mundo da física quântica?

E o que há de “inventado” na fórmula de Euler, F-A+V=2, que relaciona o número F de faces, A de arestas e V de vértices de qualquer poliedro convexo? Essa fórmula é ou não é uma descoberta?!

Mas o platonismo também tem dificuldad­es: se a matemática faz afirmações sobre o mundo real, então como ela pode ser exata e suas verdades absolutas e eternas, ao contrário do que acontece nas demais ciências naturais?

Provavelme­nte, a questão só será resolvida quando encontrarm­os uma inteligênc­ia extraterre­stre: se a matemática deles for essencialm­ente diferente da nossa, será ponto para o nominalism­o. Mas eu faço minhas apostas que vai dar platonismo!

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