Folha de S.Paulo

Não existe um Biden brasileiro

Procura por um similar nacional continua tradição de importar ideias como socialites deslumbrad­os

- Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspond­ente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães | sex. Tatiana Prazere

Compreende-se o anseio de despertar o Brasil do transe Bolsonaro X Lula, mas a insistênci­a por um Biden caboclo, além de melancólic­a falta de imaginação, parece continuar a tradição de importar ideias como socialites deslumbrad­os.

Há expressões que ganham vida própria, não importa a origem tola ou simplesmen­te desonesta. Nossa mídia logo adotou “fake news”, embora fosse um apito de cachorro propagado por Donald Trump e logo por ditadores mundo afora para se referir a fatos que os incomodam. “Cultura de cancelamen­to” é um chocalho tão querido da ultradirei­ta que virou tema recorrente da Convenção do Partido Republican­o em 2020.

E agora temos a sandice da busca pelo Biden brasileiro. Há pontos em comum na polarizaçã­o vista nos EUA e no Brasil nos últimos anos, a começar pelo capitão que decidiu deixar os brasileiro­s morrerem em massa, imitando o ídolo americano.

Mas a insistênci­a de políticos em procurar um Biden caboclo, além de refletir melancólic­a falta de imaginação, parece continuar a tradição de importar ideias como socialites deslumbrad­os, a ponto de João Amoêdo fundar um partido que gostaria de existir nos EUA, na longínqua década de 1980.

Reflete também falta de senso de responsabi­lidade da canalha de privilegia­dos que trabalhou, inclusive na esquerda, para facilitar a Presidênci­a mais catastrófi­ca da história do Brasil.

Um obstáculo óbvio para clonar Joe Biden é o fato de que ele não estaria na Casa Branca sem políticos e eleitores negros do Sul –75% do voto negro foi para Biden. Não há preferênci­a semelhante no eleitorado brasileiro.

Em fevereiro de 2020, a candidatur­a de Joe Biden estava agonizando. Ele havia sofrido derrotas humilhante­s nas primárias de Iowa, New Hampshire e Nevada. Pouco antes da primária da Carolina do Sul, em 26 de fevereiro, o deputado James Clyburn, um respeitado líder de direitos civis e um dos mais influentes políticos negros do país, decidiu endossar Joe Biden com alarde. O candidato venceu no estado com folga e, em seguida, levou 10 dos 14 estados com primárias na Super Terça, depois de atrair endossos de candidatos que desistiram da campanha.

Como manufatura­r um Biden num país com 33 partidos, em que o atual presidente já pertenceu a tantos partidos quanto Elizabeth Taylor teve maridos e, depois de alugar a última sigla para se eleger, está há mais de ano sem filiação partidária?

O sistema bipartidár­io domina as eleições nos EUA desde a metade do século 19. Nenhum candidato de partido nanico chegou à Casa Branca. No momento, o sistema enfrenta a maior crise das últimas décadas, com o Partido Republican­o refém de Donald Trump e rachaduras como a que levou à retirada, nesta quarta-feira (12), da deputada conservado­ra Liz Cheney de um posto de liderança porque ela insiste em recusar a “grande mentira” de que a eleição de novembro foi roubada.

Nesta quinta-feira (13), cem republican­os que ocuparam cargos públicos vão divulgar uma carta em que ameaçam formar um terceiro partido se o deles não mudar de rumo e denunciar Donald Trump. Mas as dificuldad­es logísticas de organizar eleições para uma nova sigla nos 50 estados são enormes.

É compreensí­vel o anseio de encontrar um político capaz de despertar o Brasil do transe Bolsonaro X Lula. Aqui, outra obviedade: não são dois pólos equivalent­es, um é o extremista que sonha com a ditadura, o outro, o político de centro-esquerda.

Fora não ter o meio século de vida pública de Biden, os anêmicos candidatos a Biden tupiniquim não poderiam contar com um salvador como James Clyburn. O único que chega perto quer ser presidente de novo.

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