Não existe um Biden brasileiro
Procura por um similar nacional continua tradição de importar ideias como socialites deslumbrados
Compreende-se o anseio de despertar o Brasil do transe Bolsonaro X Lula, mas a insistência por um Biden caboclo, além de melancólica falta de imaginação, parece continuar a tradição de importar ideias como socialites deslumbrados.
Há expressões que ganham vida própria, não importa a origem tola ou simplesmente desonesta. Nossa mídia logo adotou “fake news”, embora fosse um apito de cachorro propagado por Donald Trump e logo por ditadores mundo afora para se referir a fatos que os incomodam. “Cultura de cancelamento” é um chocalho tão querido da ultradireita que virou tema recorrente da Convenção do Partido Republicano em 2020.
E agora temos a sandice da busca pelo Biden brasileiro. Há pontos em comum na polarização vista nos EUA e no Brasil nos últimos anos, a começar pelo capitão que decidiu deixar os brasileiros morrerem em massa, imitando o ídolo americano.
Mas a insistência de políticos em procurar um Biden caboclo, além de refletir melancólica falta de imaginação, parece continuar a tradição de importar ideias como socialites deslumbrados, a ponto de João Amoêdo fundar um partido que gostaria de existir nos EUA, na longínqua década de 1980.
Reflete também falta de senso de responsabilidade da canalha de privilegiados que trabalhou, inclusive na esquerda, para facilitar a Presidência mais catastrófica da história do Brasil.
Um obstáculo óbvio para clonar Joe Biden é o fato de que ele não estaria na Casa Branca sem políticos e eleitores negros do Sul –75% do voto negro foi para Biden. Não há preferência semelhante no eleitorado brasileiro.
Em fevereiro de 2020, a candidatura de Joe Biden estava agonizando. Ele havia sofrido derrotas humilhantes nas primárias de Iowa, New Hampshire e Nevada. Pouco antes da primária da Carolina do Sul, em 26 de fevereiro, o deputado James Clyburn, um respeitado líder de direitos civis e um dos mais influentes políticos negros do país, decidiu endossar Joe Biden com alarde. O candidato venceu no estado com folga e, em seguida, levou 10 dos 14 estados com primárias na Super Terça, depois de atrair endossos de candidatos que desistiram da campanha.
Como manufaturar um Biden num país com 33 partidos, em que o atual presidente já pertenceu a tantos partidos quanto Elizabeth Taylor teve maridos e, depois de alugar a última sigla para se eleger, está há mais de ano sem filiação partidária?
O sistema bipartidário domina as eleições nos EUA desde a metade do século 19. Nenhum candidato de partido nanico chegou à Casa Branca. No momento, o sistema enfrenta a maior crise das últimas décadas, com o Partido Republicano refém de Donald Trump e rachaduras como a que levou à retirada, nesta quarta-feira (12), da deputada conservadora Liz Cheney de um posto de liderança porque ela insiste em recusar a “grande mentira” de que a eleição de novembro foi roubada.
Nesta quinta-feira (13), cem republicanos que ocuparam cargos públicos vão divulgar uma carta em que ameaçam formar um terceiro partido se o deles não mudar de rumo e denunciar Donald Trump. Mas as dificuldades logísticas de organizar eleições para uma nova sigla nos 50 estados são enormes.
É compreensível o anseio de encontrar um político capaz de despertar o Brasil do transe Bolsonaro X Lula. Aqui, outra obviedade: não são dois pólos equivalentes, um é o extremista que sonha com a ditadura, o outro, o político de centro-esquerda.
Fora não ter o meio século de vida pública de Biden, os anêmicos candidatos a Biden tupiniquim não poderiam contar com um salvador como James Clyburn. O único que chega perto quer ser presidente de novo.