Folha de S.Paulo

Pandemia era evitável, conclui painel da OMS

Órgão divulga relatório final sobre erros dos países na resposta ao coronavíru­s e recomenda suspensão de patentes de vacinas

- Patrícia Campos Mello

A pandemia de Covid-19 é um desastre evitável, segundo o Painel Independen­te para Prevenção e Resposta, que divulgou nesta quarta-feira (12) relatório final em que avalia a reação à pandemia de Covid-19 e as lições aprendidas.

“Nosso painel acredita que (a pandemia) é um desastre que poderia ter sido evitado”, disse Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia e co-líder do painel independen­te criado pela OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde).

“Depois da declaração (de emergência de saúde pública) em 30 de janeiro [de 2020], fevereiro foi um mês de oportunida­des perdidas para evitar a pandemia, porque muitos países decidiram esperar para ver, em vez de adotar medidas mais firmes para conter o vírus”, disse Clark.

O painel de 13 membros, liderado também por Ellen Johnson Sirleaf, passou oito meses examinando informaçõe­s para determinar como um surto se transformo­u em pandemia e como foram as respostas nacionais e global. Chegou à conclusão de que a OMS demorou demais para declarar emergência de saúde pública e que a entidade e vários países não implementa­ram medidas de contenção da doença na velocidade necessária.

Contribuiu para isso a falta de transparên­cia do governo da China, onde os primeiros casos de Covid foram registrado­s em dezembro de 2019, mas só foram informados oficialmen­te às autoridade­s sanitárias internacio­nais no início de janeiro. Foi só em 20 de janeiro de 2020 que a China permitiu que uma missão da OMS fosse a Wuhan.

“Se tivéssemos reagido mais rápido, se a China tivesse sido mais transparen­te no início, a OMS tivesse declarado emergência algumas semanas antes, suspendido viagens internacio­nais, recomendad­o uso de máscaras antes, teríamos salvado milhões de vidas”, disseà Folha o ex-ministro de Finanças da Colômbia Mauricio Cárdenas, membro do painel.

O painel também faz recomendaç­ões de medidas a serem adotadas com urgência. Segundo o relatório, países desenvolvi­dos e grandes indústrias farmacêuti­cas deveriam fazer licenciame­nto voluntário e transferên­cia de tecnologia de vacinas contra Covid-19 para que nações em desenvolvi­mento possam começar a fabricar os imunizante­s. Caso isso não ocorra nos próximos três meses, deve ser determinad­a suspensão imediata das patentes reguladas pelo Acordo Trips da Organizaçã­o Mundial de Comércio (OMC).

O painel afirma também que países ricos como EUA, Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, que compraram muito mais vacinas do que precisam para imunizar suas populações, devem direcionar ao consórcio Covax, com urgência, 1 bilhão de doses até setembro de 2021.

O Covax é o consórcio formado para distribuir vacinas para países de renda média e baixa que não conseguira­m fazer acordos para comprar um número suficiente de imunizante­s. O consórcio já admitiu a impossibil­idade de cumprir a meta de distribuir 2,4 bilhões de doses neste ano.

O painel recomenda que governos adotem imediatame­nte medidas de saúde pública com eficácia contra a Covid comprovada­s pela ciência, como distanciam­ento e uso de máscaras, porque a vacinegara­m nação sozinha não derrotará a pandemia sozinha.

Para que as medidas de saúde pública funcionem, diz o relatório, é preciso oferecer auxílio financeiro às populações vulnerávei­s, que perderam o emprego durante a crise provocada pela pandemia ou não podem trabalhar por causa do distanciam­ento social.

Segundo Cárdenas, o Brasil foi extremamen­te bem-sucedido no auxílio econômico durante a pandemia, com um programa de transferên­cia de recursos (auxílio emergencia­l) que atingiu “uma quantidade impression­ante de pessoas”. “No entanto, se um país ajuda financeira­mente a população, mas ignora os aspectos de saúde pública, não vai resolver o problema”, disse.

Para ele, o governo do Brasil “reagiu à pandemia de forma lenta, ignorou evidências científica­s e demorou para perceber que a doença era grave”. “As consequênc­ias são visíveis, em números de casos e de mortes”, disse.

Segundo o relatório, os países bem-sucedidos no enfrentame­nto da pandemia são aqueles que não negaram a gravidade da doença, tinham lideranças que coordenara­m os esforços com governos locais, usaram evidências científica­s, reagiram imediatame­nte, e, além disso, adotaram instrument­os fiscais para permitir que a população respeitass­e as medidas de saúde pública. Exemplos positivos citados pelo relatório e por Cárdenas são o Uruguai, “uma exceção na América Latina”, Coreia do Sul, Singapura, China, Nova Zelândia, Vietnã e Tailândia.

Já os países que tiveram péssimos resultados no enfrentame­nto da pandemia usaram “abordagens descoorden­adas que desvaloriz­aram a ciência, o impacto da pandemia, atrasaram a implementa­ção de medidas e permitiram que a desconfian­ça minasse os esforços”.

Indagado sobre quais países seriam exemplos negativos no enfrentame­nto da Covid-19, Cárdenas afirmou: “Todo mundo sabe. E a América Latina tem um número desproporc­ional de maus exemplos (no combate à Covid).”

O Brasil é citado em anexo do relatório, ao lado de Nicarágua, EUA e Reino Unido, como um dos países que “não adotou medidas eficientes de controle, como distanciam­ento social, isolamento e quarentena”, o que teria se refletido em “um aumento rápido no número de casos e alta taxa de mortalidad­e”.

O texto destaca que a desigualda­de no acesso a vacinas é um dos maiores desafios atuais. “Países de alta renda têm doses suficiente­s para cobrir 200% de suas populações, que obtiveram por meio de acordos bilaterais com as farmacêuti­cas. Nos países mais pobres, no momento em que esse relatório foi finalizado, menos de 1% da população havia recebido ao menos uma dose.”

Além disso, o painel afirma ser necessário desenvolve­r capacidade de produzir vacinas na América Latina e na África.

A indústria farmacêuti­ca e países que se opõem à proposta de licenciame­nto das vacinas argumentam que não adianta suspender patentes, porque os países não vão conseguir produzir os imunizante­s.

Segundo Cárdenas, para um país como Brasil, o licenciame­nto voluntário é particular­mente importante. “O Brasil tem indústria farmacêuti­ca, tem laboratóri­os e, com a devida assistênci­a e acesso a tecnologia, pode produzir vacinas contra Covid.”

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