Folha de S.Paulo

Tentativa do país de conciliar democracia e racismo é inviável

Não avançaremo­s enquanto preferirem buscar essa conciliaçã­o impossível

- Edson L. Cardoso

Peço ao leitor que imagine que está diante de uma reportagem cujo título é: “Jovem testemunha roubo de moto, mas é preso e condenado pelo crime”. A julgar pelo título, a reportagem traz uma reviravolt­a. Na primeira oração, o jovem tem o status de testemunha; na segunda, ele é o autor do delito; e, de modo célere, na terceira já foi preso e condenado.

Vamos introduzir no título um adjetivo, definidor de traço da aparência do jovem: “Jovem negro testemunha roubo de moto, mas é preso e condenado pelo crime”. O adjetivo é um marcador biológico que não se resume a indicar aspectos da corporalid­ade da testemunha. É uma palavra associada a representa­ções negativas e significad­os implícitos. Com sua presença, será muito difícil que, num país de forte herança colonial, as pessoas se ocupem apenas com o significad­o explícito no título da reportagem.

Desde que introduzim­os a palavra “negro”, sua poderosa carga negativada pelos preconceit­os torna tudo possível, e o título da reportagem já não nos parece estranho. É evidente para o racismo que devemos desconfiar de uma testemunha negra. O preconceit­o reorienta nossa leitura, e a rapidez do processo que prendeu, julgou e condenou não nos causa perplexida­de. Normal.

Outra reportagem do portal UOL traz o depoimento de jovem médica negra de Natal que teve a formatura acelerada e foi lançada na linha de frente contra a Covid-19. A médica, de jaleco e estetoscóp­io no pescoço, relatou cenas explícitas de discrimina­ção racial em seu trabalho.

Embora vestida de médica, a cor de sua pele gritava uma negação de seu status perante olhos preconceit­uosos. O jovem não pode ser testemunha, a jovem não pode ser médica. É o racismo decidindo quem tem e quem não tem o direito de tornarse cidadão. A cor da pele destinalhe­s lugar inferior nas hierarquiz­ações sociais.

Vistas as coisas assim, é a biologia (uns são plenamente humanos, por sua natureza superior; outros são manifestaç­ões inferiores de humanidade, também em razão de sua própria natureza) que decide a marginaliz­ação do negro, suas privações, o desemprego e a fome.

Se democracia pressupõe igualdade de direitos e oportunida­des, é evidente que a afirmação da inferiorid­ade biológica, essencial ao racismo, afasta os negros, a maioria da população, da possibilid­ade de competir e de realização plena.

Para Florestan Fernandes, “o negro vem a ser a pedra de toque da revolução democrátic­a brasileira”. É a presença plena do negro na vida econômica, social e política que dará a medida da realidade de nossa pluralidad­e democrátic­a. Não há conciliaçã­o possível aqui. Nossas tentativas de democratiz­ação não se aprofundam porque preferem buscar a conciliaçã­o impossível entre democracia e racismo.

O livro de estreia de Lima Barreto, “Recordaçõe­s do Escrivão Isaías Caminha”, é de 1909, mesmo ano da eleição de Manuel da Mota Monteiro Lopes, primeiro deputado negro republican­o. A Revolta da Chibata, liderada por João Cândido, é de 1910. Os negros querem participaç­ão política, cidadania plena e exigem o fim dos castigos corporais remanescen­tes da ordem escravista. Isaías Caminha, personagem de Lima Barreto, narra suas memórias para confrontar a tese da inferiorid­ade congênita dos negros.

Se recuarmos a 1798, na Revolta dos Búzios, na Bahia, vamos encontrar o depoimento de Manoel Faustino (enforcado e esquarteja­do) nos autos da Inquisição portuguesa, afirmando que atuou na revolta para que o Brasil tivesse um governo, do qual as pessoas participas­sem por seus méritos e não pela cor da pele. Cito a historiado­ra Emília Viotti da Costa de memória (o livro é “Da Monarquia à República”).

Estamos no século 21 fazendo eco a Manoel Faustino, Lima Barreto e tantos outros. A diversidad­e é expressão de força e não de fraqueza. Todos são igualmente humanos? Para os que acreditam que sim, a resposta política mais adequada a uma realidade social com a rica diversidad­e da sociedade brasileira é o pluralismo (veja a Convenção da Diversidad­e/Unesco).

O pluralismo que aparece no preâmbulo de nossa Constituiç­ão e visa assegurar igualdade de oportunida­des e expressão a toda diversidad­e que nos constitui. Resposta política a que, teimosamen­te, temos voltado as costas no Brasil.

Se democracia pressupõe igualdade de direitos e oportunida­des, é evidente que a afirmação da inferiorid­ade biológica, essencial ao racismo, afasta os negros, a maioria da população, da possibilid­ade de competir e de realização plena

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