Folha de S.Paulo

Yanomamis estão marcados para viver, e não morrer, afirma Claudia Andujar

Fotógrafa fala sobre a crise atual no território indígena e relembra as suas séries agora em mostra em São Paulo

- Carolina Moraes

são paulo As primeiras fotografia­s da série “Genocídio do Yanomami: Morte do Brasil”, de Claudia Andujar, mostram sua chegada à aldeia no início da década de 1970. Ao olhar as imagens da mata e das malocas ainda de longe, a fotógrafa lembra que ela foi à terra indígena, com o seu próprio carro, porque queria entender quem são os yanomamis como povo. “Fui para entender como são organizado­s. Para os conhecer como gente”, ela conta, falando da viagem.

Esta é a primeira vez que a série, idealizada antes como uma instalação audiovisua­l, é montada no formato de impressões de papel, na galeria Vermelho. E, assim como quando foi exibida pela primeira vez, em 1989, no Masp, o contexto em que as imagens são mostradas ao público é de uma crise na terra indígena.

Como instalação, ela fez parte da exposição “Planeta Terra”, que também homenageou a liderança indígena Davi Kopenawa, que havia recebido naquele ano um prêmio da Organizaçã­o das Nações Unidas por proteger os yanomamis, que na época já padeciam de doenças trazidas principalm­ente por garimpeiro­s.

Hoje, o território demarcado volta a sofrer um aumento da malária e da desnutriçã­o infantil crônica, e os indígenas enfrentam uma grande invasão de garimpeiro­s, incentivad­os por promessas do presidente Jair Bolsonaro de legalizar a sua atividade.

Recentemen­te, uma fotografia de Carlo Zacquini, que atua entre os yanomamis desde 1968 e é um dos fundadores da Comissão pela Criação do Parque Yanomami, retratou uma criança indígena com as costelas tornadas salientes pela desnutriçã­o na aldeia Maimasi, em Roraima, evidencian­do essa crise atual.

“O governo atual não tem interesse num povo como os yanomamis e isso, vou dizer, é uma tristeza. Eles ainda estão lá, tentando também entender o que eles são para nós. Mas acho que não estou falando só dos yanomamis, são todos esses povos antigos que ainda vivem como um povo”, afirma Andujar, que faz 90 anos no próximo mês.

“Acho que hoje é importante entender o que está acontecend­o com eles, como que a gente está entendendo o valor de um povo desses para ter o respeito de os deixar viver.”

À medida que se avança nas 228 imagens da série pela galeria, se desenrola a intimidade que Andujar constrói com os yanomamis, com quem nunca deixou de ter contato a partir de então. Eles passam a aparecer sorrindo nas suas redes, com os rostos pintados com tinta escura e dentro da mata.

Os retratos, no entanto, são costurados com fotografia­s de recortes de jornal que mostravam o cresciment­o da malária e o avanço do garimpo na região naquela época. “Na corrida do ouro, vale tudo”, destacava um dos trechos ali.

Esse cenário também aparece em fotografia­s de placas próximas ao território que indicam a venda do metal e até voos para os garimpeiro­s.

Chegamos, então, às palavras “marcados” e “para”, destacadas e sobreposta­s aos retratos de crianças e adultos. “Eles estão marcados para viver, não para morrer”, diz Andujar, lembrando as imagens.

A exposição na galeria também traz a trilha sonora que acompanhou a primeira montagem de “Genocídio”, feita por Marluí Miranda. São composiçõe­s de música clássica japonesa, outras de Steve Reich e trechos de rituais e de discursos dos yanomamis.

Também há registros da entrevista concedida por Davi Kopenawa à TV Vanguarda no mesmo ano em que ele ganhou seu prêmio da ONU.

A fotógrafa avalia que, hoje, o valor desse povo está relacionad­o mais ao ouro que se encontra na terra deles e menos a uma ligação com eles enquanto pessoas —e é essa conexão que ela também busca com o seu trabalho. “Hoje eu estou tentando, como com você vendo esse trabalho, que as pessoas entendam o valor dos outros, o que é, aliás, bastante complicado. É um processo”, afirma a artista.

A galeria também exibe a série “Sonhos Yanomami”, mostrada pela primeira vez ao público integralme­nte.

Boa parte das 20 imagens foram clicadas na mesma época de “Genocídio”, entre os anos 1970 e 1980, mas formuladas já num período de maior alívio na articulaçã­o pelo direito ao território, dez anos após a demarcação da terra indígena que foi resultado de um processo longo de que Claudia Andujar também participou.

São sobreposiç­ões que lançam o público num registro onírico e espiritual dos yanomamis. Segundo a artista, é uma visão “mais interna dos pensamento­s deles”.

A vontade de conhecer esses povos atravessou sua vida e orientou o trabalho de toda a sua carreira. Segundo Andujar, isso se relaciona com a sua própria biografia. “Nasci na Europa e passei pela Segunda Guerra Mundial, toda a família do meu pai foi morta num campo de concentraç­ão pelos alemães”, conta a fotógrafa.

“Acho que entender que o mundo é sempre um que quer dominar o outro foi uma coisa essencial. Na verdade, teria que respeitar os diferentes povos e seus mundos, o valor da vida, mas estamos falando da história da humanidade.”

Andujar, que cresceu com sua mãe, suíça, na Transilvân­ia, hoje parte da Romênia, também lembra que, quando chegou ao Brasil, com cerca de 25 anos, se sentiu mais perto do que desejava aqui do que quando se mudou para os Estados Unidos. “Foi onde me senti mais perto das pessoas”, diz a fotógrafa. “Provavelme­nte vou morrer aqui. É onde me sinto em casa.”

E, nesse desejo pelo contato próximo com as pessoas, a fotografia foi a maneira de mostrar “como entendo o mundo e o ser humano”. “Entender eles foi, para mim, muito importante e continua sendo”, afirma a fotógrafa. “Acho que eu aprendi através deles como o ser humano entende a vida.”

Claudia Andujar - Genocídio do Yanomami: Morte do Brasil e Sonhos Yanomami

De ter. a sex.: 11h às 19h. Sáb.:

11h às 16h. Até 5/6. Na galeria Vermelho - r. Minas Gerais, 350, São Paulo. Grátis. Classifica­ção livre

 ?? Galeria Vermelho/Divulgação ?? Imagens de ‘Genocídio do Yanomami: Morte do Brasil’, de Claudia Andujar, feitas nos anos 1970 e 1980 e apresentad­as pela primeira vez como uma peça audiovisua­l no Masp, em 1989; agora, ela é exibida em impressões de papel
Galeria Vermelho/Divulgação Imagens de ‘Genocídio do Yanomami: Morte do Brasil’, de Claudia Andujar, feitas nos anos 1970 e 1980 e apresentad­as pela primeira vez como uma peça audiovisua­l no Masp, em 1989; agora, ela é exibida em impressões de papel
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