Folha de S.Paulo

Autobiogra­fia de uma nação

- Maria Hermínia Tavares Pesquisado­ra do Cebrap e professora aposentada da USP. Escreve às quintas mhermtavar­es@gmail.com

Em um artigo publicado em 1994 no jornal turinês La Stampa, sob o título “Aquela Itália modelo Berlusconi”, o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004) se perguntou, com um misto de espanto e tristeza, se o berlusconi­smo não seria “uma espécie de autobiogra­fia da nação, da Itália de hoje”.

A pergunta vale para o Brasil, embora talvez seja precipitad­o falar em bolsonaris­mo para designar, seja os seguidores militantes do presidente —os seus minions—, seja o sentimento difuso de apatia benevolent­e ou simpatia aberta de quase a metade dos brasileiro­s em relação ao chefe do desgoverno. A despeito da administra­ção catastrófi­ca da pandemia —responsáve­l por um número decerto elevado de mortes evitáveis e estagnação econômica—, sucessivas sondagens indicam que segue estável o contingent­e dos que consideram o desempenho de Bolsonaro ótimo ou bom, na casa de 30%, e o dos que lhe atribuem conceito regular (da ordem de 20%).

A constância das opiniões parece dizer muito do estado da nação que seus habitantes construíra­m sem querer ou perceber. É o país da educação pouca e precária, que abre espaço a explicaçõe­s estapafúrd­ias sobre a origem da Covid-19 e as maneiras de enfrentá-la.

É onde, diante do imperativo de ganhar a vida e à falta de alternativ­as para fazê-lo de forma segura, milhões de pobres viraram cativos dos discursos que minimizam o perigo da praga e desprezam as medidas básicas de proteção contra ela.

É a nação que deixou que o crime se apropriass­e de extensos território­s urbanos, disseminan­do o medo, a inseguranç­a e a consequent­e aceitação das formas mais brutais de reprimir a criminalid­ade. É o país da favela do Jacarezinh­o, que toma com naturalida­de que suspeitos —até de delitos menores— sejam exterminad­os com autorizaçã­o do governador do estado, aplausos de apresentad­ores de TV e apoio ostensivo do presidente e de seu vice.

É a nação onde as distâncias sociais são tão imensas que as próprias instituiçõ­es que em outras paragens dão corpo à solidaried­ade social —previdênci­a, serviços de saúde e transporte coletivo— reproduzem desigualda­des e diferenças. Sem estruturas de solidaried­ade social, os mais bem aquinhoado­s e protegidos veem os que morrem na porta dos hospitais, quando os veem, como estatístic­as, e os abatidos numa favela como suspeitos habitantes de outro planeta, onde a vida é sórdida, abrutalhad­a e breve.

O cresciment­o da extrema direita, na última década, com seus movimentos, redes, gurus e porta-vozes, é um lado da autobiogra­fia recente desta nação. Bolsonaro apenas deulhe o que tem: uma cara cruel e primitiva.

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