Folha de S.Paulo

Chacinas de maio, 15 anos depois

- Thiago Amparo

são paulo Talvez o leitor não saiba, mas quem escreve neste espaço, o mais nobre do jornal, é um jovem negro. Note, portanto, que escrever sobre chacinas não é para mim um exercício teórico sobre lugares distópicos: é sentir na pele o medo de que um dia a bala também me faça sangrar. O mesmo sangue que escorreu nas casas e vielas das execuções em Jacazerinh­o. Cansa ter que negociar, em caracteres, a minha humanidade.

Cansa lembrar o óbvio: morte em intervençã­o policial é homicídio, mesmo que o racismo faça com que o corpo preto não pese quando é abatido ao chão. Pena de morte de civis não existe no país, posto que ser suspeito não é cheque em branco, nem legítima defesa é autorizaçã­o a priori para a matança. A arrogância com que a Polícia Civil do Rio tratou Jacazerinh­o tem só um nome: certeza de impunidade.

Chacina é feita em território­s onde a morte é a regra, e a lei, a exceção. É feita do sangue que o espetáculo da morte produz. Há exatos 15 anos, nesta semana, mais de 500 civis e 59 policiais foram mortos em dez dias em São Paulo nos chamados “crimes de maio”. Dois Jacarezinh­os por dia. Até hoje, as mães de maio esperam a federaliza­ção do caso e o reconhecim­ento da imprescrit­ibilidade das violações, em suspenso no STJ e no STF. Chacina é feita de um sistema judicial que referenda a verdade policial como a única.

Chacina é feita de hipocrisia. Dizer que é pelas crianças no estado que fuzila crianças voltando da escola. Dizer que é pelos policiais, enquanto os resume a soldados numa guerra desgoverna­da, senão pelo governo da morte. Dizer, com arrogância, que é com bangue-bangue que se faz segurança pública no país que mata muito e investiga pouco.

“Eu clamo à sociedade aterroriza­da: e vocês?”, pergunta-nos Debora Silva, liderança das mães de maio. “Vão me ajudar a erguer estes mortos? Não deixe que meu grito se transforme numa palavra muda a ecoar pela paisagem. Me ajude a barrar o rajar das metralhado­ras.” Chacina é terrorismo de estado, não policiamen­to.

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