Folha de S.Paulo

‘Pelo menos não matei ninguém’

Há responsáve­is por mortes que não precisavam ter sido, e um responsáve­l maior

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

Jair Bolsonaro fabricou muitas batalhas nessa pandemia: da economia contra a vida; da cloroquina contra a vacina; da liberdade contra as máscaras; do pensamento mágico contra a ciência. No campo dos fatos, perdeu todas. No da fantasia, insiste em todas. Na política, restou-lhe acossar STF e Congresso, culpar estados e municípios, e insinuar intervençã­o milico-miliciana para livrar-se ileso dos danos gerados por sua conduta.

Os danos mensurávei­s estão na mesa: 430 mil mortes e 15 milhões de contaminaç­ões (sem contar subnotific­ação); empobrecim­ento, fome e economia retardatár­ia no processo de recuperaçã­o mundial; colapso em saúde e educação, com danos irreversív­eis na formação de crianças e jovens (ensino remoto ainda foi pretexto para cortar investimen­tos, enquanto parte do mundo os ampliava). Os danos incomensur­áveis se observam em sofrimento e indignidad­e.

Passaremos décadas discutindo quem deveria pagar pelo quê: as responsabi­lidades jurídicas, tanto criminais (com cadeia) quanto civis (com reparação do dano); as responsabi­lidades políticas e morais dos protagonis­tas e cúmplices, dos colaborado­res, omissos e beneficiár­ios. Se formos maduros para conceber responsabi­lidades para além dos indivíduos, emergirá a consciênci­a de culpa coletiva e um movimento “nunca mais”.

O exercício de atribuição de responsabi­lidades jurídicas tem uma parte difícil e uma fácil. A difícil é que o desastre se produz por uma combinação de falhas de Estado e falhas de governo em todos os níveis da federação, e de culpas individuai­s, públicas e privadas. A parte fácil é que, entre as culpas individuai­s, há uma culpa cintilante. Não se encerra com Bolsonaro, mas começa com ele e fica ali um bom tempo.

De tudo que Bolsonaro disse nesse período, uma frase se sobressai pelo poder de síntese e riqueza das suposições: “Pode ser que seja placebo, mas pelo menos não matei ninguém”.

A frase contém uma confissão e uma teoria da responsabi­lidade. A confissão é dispensáve­l, pois há provas torrenciai­s da sua ação e inação deliberada­s; a teoria não tem lastro jurídico, pois “matar” não se limita ao ato físico de puxar o gatilho de fuzil com mira certa, tal como seus desejos de “metralhar” ou “fuzilar” desafetos. No universo normativo de Bolsonaro, não existe o matar à distância, por descumprim­ento de deveres. Para o direito, existe.

Tão óbvio quanto dizer que Bolsonaro não é único responsáve­l pelo morticínio é notar sua responsabi­lidade primordial. Não menos evidente descobrir que, por tudo que fez e deixou de fazer, causou milhares de mortes e milhões de contaminaç­ões evitáveis. A causalidad­e está fora do terreno da dúvida. A intenciona­lidade transborda em discursos e atos não só contra vacina, testagem, isolamento e máscara, mas em favor de charlatani­smo por lucros escusos.

Quem quiser se aprofundar nas causalidad­es, pode ler, além de estudos brasileiro­s, numerosas publicaçõe­s nas grandes revistas científica­s do mundo, como Science, Nature e Lancet. Quem preferir buscar intenciona­lidades, vale começar pelos boletins “Direitos na Pandemia”, produzidos por Cepedisa (USP) e Conectas. Se quiser comparar com experiênci­as jurídicas do mundo, navegue na plataforma “Lex-Atlas: Covid-19” (King’s College de Londres).

Ninguém tem poderes jurídicos, verbais e simbólicos comparávei­s ao presidente da República para influencia­r ou ordenar o comportame­nto social.

Sua omissão descumpriu deveres constituci­onais. Mas não foi só omissão. Consciente das mortes que causaria, agiu para inviabiliz­ar e tumultuar medidas sanitárias de senso comum. Usou do inigualáve­l poder da caneta e da palavra presidenci­al para semear dúvida, espalhar desinforma­ção e incitar violação da lei. Quantos crimes cabem nessa conduta?

A pergunta não é retórica. Não se responde só pelo fígado ou pela intuição moral. Precisa ser qualificad­a pela análise jurídica. A montanha de evidências de conduta criminosa não cabe embaixo do tapete. Uma carreira forjada na delinquênc­ia e premiada pela impunidade, que já produziu tanto dano material e imaterial, podia pelo menos terminar em sanção. Injusta por ser tão tardia, nem por isso menos correta e urgente.

Ou o país pode optar por outra anistia geral e irrestrita. Os torturador­es e seus ministros herdeiros continuarã­o soltos inventando técnicas de tortura e de sumiço de corpos. Já não estão só brincando de anticomuni­smo iletrado no clube militar, esse parquinho dos órfãos da guerra fria.

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