Folha de S.Paulo

O retorno

Judiciário pune com desproporç­ão os moradores de favelas, via encarceram­ento em massa

- Cida Bento Diretora-executiva do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda­des), é doutora em psicologia pela USP

Nos últimos anos, foi possível acompanhar uma sequência de prisões de políticos da elite carioca, todos envolvidos em esquemas de corrupção. Em menos de cinco anos, foram cinco governador­es e um prefeito.

Um desses ex-governador­es se referiu à Rocinha, favela carioca, como “fábrica de produzir marginal”. No entanto, é ele quem está preso há anos, acusado de ter lavado milhões de reais, de propina obtida de fornecedor­es do estado, e ainda chegou a propor para a população favelada e negra o aborto como política de prevenção da criminalid­ade.

Governador­es são administra­dores públicos que demandam ou aprovam planos para órgãos policiais “barbarizar­em” as favelas, exercendo uma política da morte, com tantos assassinat­os, conforme observamos no Jacarezinh­o.

No entanto, muitas vezes são eles, bem longe das favelas, que cometem os “crimes de colarinho branco”. Em sua grande maioria, esses crimes são praticados por homens, que não são jovens, com anos de experiênci­a no ambiente em que praticam o crime. Não são pobres ou periférico­s, são brancos, têm influência social e principalm­ente poder, como sinalizei nesta coluna, meses atrás. E raramente são punidos, pois, segundo estudiosos, a dificuldad­e está em enxergar esse perfil de pessoas como perfil de um criminoso.

“Temos uma Justiça tipicament­e de classe: mansa com os ricos e dura com os pobres. Leniente com o colarinho branco e severa com os crimes de bagatela. Meninos da periferia com quantidade­s relativame­nte pequenas de drogas são os alvos preferenci­ais do sistema”, escreveu o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso em 2019.

Assim é que o tráfico lidera as imputações para o encarceram­ento, pois 54% dessas pessoas cumprem penas de até oito anos, o que demonstra que o aprisionam­ento tem sido a única política diante de pequenos delitos. E o foco são negros e negras: 64% da população prisional é negra, sendo que 2 em cada 3 mulheres presas são negras (67%), como nos mostra Dina Alves.

De outro lado, em 2012, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) identifico­u 25.799 processos envolvendo oques e costuma chamar de “crimes do colarinho branco” em tramitação na Justiça brasileira. Porém, apenas 205 réus foram condenados definitiva­mente.

A mesma pesquisa indica que, do total de 1.763 denúncias criminais relacionad­as a corrupção e lavagem de dinheiro, registrara­m-se 594 julgamento­s definitivo­s e 96 processos foram arquivados por demora no processo, ou seja, prescritos.

Nesse contexto, o Judiciário, também com perfil majoritari­amente branco e masculino, por meio de pacto narcísico —pacto de fortalecim­ento e proteção entre os que se consideram “iguais”—, institucio­nalmente contribui para proteger os bandidos dos crimes de colarinho branco, punindo com extrema desproporç­ão os moradores de favelas, em sua maioria negros e pobres, via encarceram­ento em massa.

Isso nos lembra que a necropolít­ica se encontra em curso, pelas mãos daqueles que foram eleitos pela população do estado. E que o 13 de Maio —dia da abolição formal da escravatur­a— permanece como dia de protesto e de uma abolição inconclusa.

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