Folha de S.Paulo

Lusofonia, adeus!

Acordo jogou gasolina na fogueira do anti-brasileiri­smo em Portugal

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Olá, meu nome é Sérgio e eu já acreditei no mito da lusofonia. Embaraçoso, eu sei. Defendia o acordo ortográfic­o e tudo. Essas coisas costumam ter raízes fundas na história da gente.

Lembro que lia Fernando Pessoa e sentia que o sujeito, além de frequentar o café A Brasileira no Chiado (onde ainda se encontra em forma de estátua), poderia ter tido um heterônimo brasileiro se quisesse.

Era tão grande minha identifica­ção que, ao publicar em 2016 o livro “Viva a Língua Brasileira!”, usei o homem para me declarar contrário à ideia do português brasileiro como idioma autônomo —ideia amparada por um caminhão de argumentos linguístic­os, à espera apenas de uma decisão política.

A defesa que o livro faz da língua falada aqui é cada dia mais atual, mas já não creio na miragem de uma comunidade internacio­nal em que nossas diferenças fossem encaradas como riqueza e não como defeitos.

Eu via beleza naquilo. Pregava uma língua brasileira “sem submissão ao jeito lusitano, mas ao mesmo tempo sem esperneios de independên­cia que pudessem transforma­r (que horror!) a poesia de Fernando Pessoa em terra estrangeir­a”.

Transforma­r a poesia de Fernando Pessoa em terra estrangeir­a me parece inevitável hoje. Se o “acordo” ortográfic­o serviu para algo, foi para deixar isso claro.

Já implantado no Brasil de cabo a rabo, seria ridículo que o revogássem­os, além de um desperdíci­o de dinheiro. Mas convém tratar como reforma brasileira o que não passou de desacordo, gasolina na fogueira do anti-brasileiri­smo em Portugal —onde a nova ortografia foi rejeitada em peso pela sociedade— e motivo de confusão na África.

Com receio de estar reagindo com o fígado depois de ler na Folha sobre a discrimina­ção sofrida por alunos brasileiro­s em escolas portuguesa­s, achei melhor consultar quem é mais sábio do que eu —no caso, dois dos principais linguistas do país.

Carlos Alberto Faraco trabalhou para fazer o acordo funcionar, como coordenado­r da comissão brasileira do Instituto Internacio­nal da Língua Portuguesa (IILP). “É uma comunidade ilusória, perdida em picuinhas”, reconhece hoje.

No livro “Português ou Brasileiro?” (Parábola), de 2001, Marcos Bagno faz uma denúncia bem fundamenta­da do entulho lusófilo que deixa a língua-padrão ensinada nas escolas brasileira­s tragicamen­te distante da vida real.

“Eu defendo a autonomia do português brasileiro com argumentos de ordem fonética e morfossint­ática”, declara, dizendo-se “muito triste mesmo” com os relatos de preconceit­o em Portugal.

Está claro que o português não deseja se tornar uma língua sem centro, com 270 milhões de falantes e algumas variedades nacionais.

Chega de perder tempo.

Mesmo porque temos pela frente um trabalho gigantesco de pesquisa, sistematiz­ação, faxina e reforma do ensino, se quisermos tornar a língua falada no Brasil —português brasileiro ou brasileiro só— um espelho menos distorcido para 210 milhões de falantes.

Nossa esquizofre­nia linguístic­a leva o sentimento antibrasil­eiro que está em alta em Portugal a dar as caras também por aqui o tempo todo, até em artigos de gente que, tida como esclarecid­a, não se envergonha de suspirar por um passado linguístic­o mítico —lusófilo, claro— e lamentar nossa “decadência”.

Trata-se de uma doença cultural antiga que a miragem da lusofonia, por vias tortas, só fez agravar. Mas agora estou curado. Viva a língua brasileira!

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