Folha de S.Paulo

Análise de cocô de 2.000 anos atrás mostra como flora intestinal mudou

Amostras estudadas por cientistas remontaram genoma e mapearam diversidad­e de microrgani­smos que habitam corpo humano

- Gabriel Alves

são paulo Ao analisar amostras de fezes de mais de mil anos de idade, um grupo de cientistas (dos EUA, México, Canadá, Itália, Dinamarca e Alemanha) conseguiu remontar o genoma de microrgani­smos do passado que habitam o interior do corpo humano e mapear a diversidad­e deles.

O resultado, publicado nesta quarta (12) na revista Nature, mostra que a flora intestinal (ou microbiota) das paleofezes é mais similar à das populações não industrial­izadas. Um dos micróbios “perdidos” com a industrial­ização éo Treponema succinifac­iens.

Nos cocôs antigos há grande quantidade de enzimas capazes de digerir quitina, um tipo de carboidrat­o usado por insetos para construção de seu exoesquele­to e presente em cogumelos e fungos. O achado é indício de como era a dieta das pessoas no passado.

Em outra análise, foram comparadas enzimas produzidas pelos micróbios ativadas por carboidrat­os. Antigament­e e em populações não industrial­izadas, era mais fácil encontrar enzimas capazes de digerir amido, provavelme­nte devido a uma maior ingestão de carboidrat­os complexos (como grãos integrais e certos tubérculos).

O mesmo vale para genes de resistênci­a a antibiótic­os nos micróbios —em populações industrial­izadas são muito mais presentes, denunciand­o abuso desses medicament­os, tanto em humanos quanto para a produção de carne.

Um dos maiores desafios foi reconstitu­ir a informação genética desses micróbios. Um genoma íntegro de bactéria pode ter centenas de milhares de pares de bases, ou “letras” genéticas (humanos, para comparação, têm 3 bilhões de pares). Na amostra, o material estava tão danificado que, em média, os pedaços de DNA tinham 174 pares de bases.

Também se buscou ter certeza de que o DNA das amostras não estava contaminad­o com DNA mais recente, o que poderia nublar as conclusões.

Ao todo foram usadas oito amostras de cocô entre 1.000 e 2.000 anos, encontrada­s em cavernas no sudoeste dos EUA e no México.

Os cientistas conseguira­m, no fim, reconstrui­r 498 genomas de micróbios, sendo que 181 têm origem no intestino e, desses, 61 representa­m espécies ainda não conhecidas. O passo seguinte foi comparar esses achados com a microbiota de populações “industrial­izadas” e das que hoje vivem isoladas, “não industrial­izada”, como certas tribos na Amazônia ou na ilhas Fiji.

“Um conceito importante que surge de nosso trabalho é que, se a teoria do desapareci­mento do microbioma humano estiver correta, para reduzir a carga de doenças crônicas, simplesmen­te comer bem e fazer exercícios não é suficiente —precisamos semear novamente o microbioma humano moderno com as espécies que perdemos”, disse à Folha Aleksandar Kostic, autor sênior do estudo e professor de microbiolo­gia da Universida­de Harvard.

Já há grande interesse da indústria farmacêuti­ca e biotecnoló­gica na produção de novas terapias com base nesses conhecimen­tos. Por exemplo, a infecção resistente pela bactéria Clostridiu­m difficile, pode ser tratada com transplant­e de fezes, com alta taxa de sucesso. Existem investigaç­ões de tratamento­s para doenças inflamatór­ias intestinai­s e também para terapias combinadas em oncologia.

Mas a ideia de alterar o microbioma ao estado “original” pode ser uma tarefa inglória, segundo Emmanuel Dias-Neto, pesquisado­r do A.C.Camargo Cancer Center e estudioso do microbioma humano, que não participou do estudo.

Uma das maiores dificuldad­es é ter a dimensão exata do que é saudável. “Ainda não temos uma referência do que seria uma microbiota saudável para o brasileiro. Não tem como fazer um exame e dizer que a quantidade de uma determinad­a bactéria está baixa”, diz.

Mas já é possível fazer algo a respeito da saúde da sua microbiota: a dieta é um dos fatores que mais influencia­m essa composição.

O consumo de fibras, carboidrat­os complexos e frutas in natura está associado a melhor saúde gastrointe­stinal e a menor risco de câncer de cólon; consumo excessivo de carne, por sua vez, nos leva na direção oposta.

Outros fatores são mais difíceis de controlar, como poluição e ingestão de microplást­icos, presentes até na água. Assim, a recomposiç­ão da microbiota nunca seria absoluta.

Como muitos desses fatores são nocivos aos microrgani­smos, a tendência é que outros rapidament­e ocupem esses nichos.

“Se a teoria do desapareci­mento do microbioma humano estiver correta, para reduzir a carga de doenças crônicas, simplesmen­te comer bem e fazer exercícios não é suficiente Aleksandar Kostic

Professor de microbiolo­gia da Universida­de Harvard

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Ilustraçõe­s Luciano Veronezi
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