Governo de Bolsonaro articula afrouxamento das regras da TV paga
Longe dos holofotes, anteprojeto busca condições para estrangeiros atuarem com o menor número de restrições
Um marco chama a atenção. A presença da Netflix no Brasil completa uma década neste ano, mas o streaming não foi até hoje regulado por aqui. Por um bom tempo, a plataforma reinou quase sozinha, mas, a partir do ano passado, o cenário mudou radicalmente. A pandemia fez explodir o número de usuários e acelerou o lançamento de novos serviços, como é o caso do Disney+ e do Globoplay.
O segmento mais aquecido do mercado permanece, contudo, apartado das regras que regem o setor audiovisual brasileiro. Se os impasses são grandes é porque as definições em torno do VoD, ou “video on demand”, em inglês, implicam a reordenação de forças num setor que a convergência digital agigantou.
O negócio do streaming envolve interesse dos produtores e distribuidores independentes de cinema, das televisões abertas e fechadas, dos conglomerados de entretenimento internacionais e das empresas de telefonia.
Nessa arena, os produtores são os mais fracos economicamente e os mais ativos na tentativa de mobilização da opinião pública. Eles lutam para que a regulação inclua obrigações de investimento em conteúdo local e garanta a presença de filmes e séries locais em todas as plataformas —algo que a Europa, por exemplo, já prevê.
O grupo ligado à telefonia é, por sua vez, o que mais se mantém em silêncio publicamente e o mais agressivo e articulado no âmbito do governo.
Não por acaso, foi ao tratar do leilão da tecnologia 5G, na semana passada, que o ministro das Comunicações, Fabio Faria, afirmou que a regulação do streaming é um assunto de interesse de Jair Bolsonaro.
Tampouco deve ser coincidência que nesta terça a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, tenha divulgado uma nova “agenda regulatória”.
O texto foi publicado na sequência da última reunião de sua diretoria, na qual o diretor-presidente da agência, Alex Braga, defendeu a “eliminação de barreiras” na televisão por assinatura.
A TV paga e o VoD se encontram na Lei 12.485, aprovada em 2011, durante o governo Dilma Rousseff e celebrada como uma vitória histórica da produção independente.
A partir daí, as teles passaram a pagar uma taxa destinada ao FSA, o Fundo Setorial do Audiovisual, que chegou a injetar R$ 1 bilhão anual na produção, e as programadoras tiveram de garantir um mínimo de horas de exibição de séries e filmes brasileiros.
As obrigações foram o pedágio que as teles aceitaram pagar em troca da permissão para atuar no mercado de TV por assinatura . Acontece que a TV paga não basta mais.
No último ano, o serviço perdeu mais de meio milhão de assinantes, voltando, praticamente, aos patamares de 2012, quando a lei entrou em vigor. O streaming, por sua vez, voou. E as teles querem participar dessa festa.
Para isso, elas desejam, entre outras coisas, que sejam revogados dois artigos da Lei 12.485. Está enganado quem pensa que esses artigos tratam da cota para conteúdo brasileiro ou da taxa que alimenta o FSA. Na mira das teles e dos grupos internacionais de mídia estão as restrições à propriedade cruzada e à produção de conteúdo por grupos ligados à telefonia.
É no meio desse jogo que estão a Ancine, a Anatel, a Agência Nacional de Telecomunicações, e o grupo de trabalho, ou GT, que foi formalizado em fevereiro pelo Ministério das Comunicações.
O GT, formado por integrantes do governo, ainda não se reuniu oficialmente, mas está trabalhando na atualização do marco jurídico que rege o setor. A “simplificação” que acaba de ser proposta pela Ancine e que entra em consulta pública faz parte desse processo e fornece pistas do caminho a ser trilhado.
A intenção do governo é, no anteprojeto de lei, criar condições para que as empresas estrangeiras atuem no país com o menor número de restrições possível. Para isso, o primeiro passo é afrouxar, a partir da alteração de regras e normas, a Lei 12.485.
No GT e na diretoria da Ancine, a ideia da cota de tela, tão cara à produção independente, e presente no projeto de lei do deputado petista Paulo Teixeira —que tramita no Congresso—, não tem lugar.
O consenso que vai se formando no governo é que o mercado se autorregula e que a lei deve apenas estimular, via abatimento fiscal, o investimento em produção brasileira. Sem obrigações.
Coincidentemente ou não, Netflix, Sony e HBO Max, pertencente à Warner, anunciaram há pouco o investimento em produções brasileiras e enfatizaram o valor do “produto local” para seus negócios.