Folha de S.Paulo

Crítica ou propaganda

Indústria do entretenim­ento adora troféus e fecha os olhos ao que ocorre nos bastidores de premiações

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

A ruína do Globo de Ouro só foi consumada nesta semana com a decisão da rede de televisão NBC de não transmitir a cerimônia de entrega do prêmio em 2022. Mas os principais problemas que envolvem essa premiação são antigos e bem conhecidos.

Uma reportagem do jornal Los Angeles Times, em fevereiro, mostrou que a Associação de Jornalista­s Estrangeir­os de Hollywood, que criou o Globo de Ouro, é mal gerida financeira­mente, benevolent­e com problemas éticos e não conta com nenhum integrante negro entre os votantes.

Ao trazer à baila alguns elementos novos, a reportagem foi responsáve­l por acelerar o processo de decadência, mas há muitos anos já se sabia que o Globo de Ouro não era um prêmio para ser levado a sério.

Diferentem­ente do Oscar, que é concedido por milhares de integrante­s da indústria, o Globo de Ouro sempre foi escolhido por cerca de cem jornalista­s estrangeir­os radicados em Los Angeles.

É um universo pequeno demais e pouco representa­tivo dos humores da crítica de cinema e de televisão.

Há uma certa hipocrisia por parte de grandes produtores, como Netflix, Amazon e Warner, que só agora anunciaram boicote ao Globo de Ouro.

E chega a ser cômico o oportunism­o de Tom Cruise, que comunicou a devolução dos troféus que recebeu pelos filmes “Nascido em 4 de Julho” (1989), “Jerry Maguire” (1996) e “Magnólia” (1999).

Essa história é muito ilustrativ­a sobre como a indústria do entretenim­ento é apaixonada por troféus e fecha os olhos para o que ocorre nos seus bastidores. Os problemas do Globo de Ouro sempre ficaram em segundo plano diante do frege no tapete vermelho e do glamour da festa transmitid­a por uma grande rede de TV.

Falar mal de jornalista­s e críticos que fazem parte de júri de prêmios é sempre complicado, e um tabu.

Essa limitação também pode ter ajudado a Associação de Jornalista­s Estrangeir­os de Hollywood a passar intacta por tanto tempo.

O jornalista Paulo Francis (1930-1997), no curto período em que se arriscou como crítico teatral, entre o final dos anos 1950 e o início da década seguinte, dedicou dezenas de artigos ao próprio ofício.

Comprou várias brigas com os colegas da geração que o antecedeu e estabelece­u parâmetros para o trabalho.

Paulo Francis defendia, por exemplo, que o crítico deveria divulgar publicamen­te as suas simpatias. “Por simpatia, notem bem, não quero me referir a publicidad­e gratuita, a lisonja indiscrimi­nada aos empresário­s, que o leitor verifica em algumas seções de teatro da cidade [no caso, refere-se ao Rio de Janeiro]”, afirmou.

“Essa atitude desmoraliz­a por completo a função crítica, por reduzir o bom e mau teatro a um plano de igualdade. Nem sequer a classe teatral, na intimidade, respeita esses críticos que são motivo do ridículo geral”.

Os artigos sobre a crítica são 62, um número pequeno diante do total de 1.236 textos no Diário Carioca que foram resgatados pelo então jornalista (e hoje roteirista consagrado) George Moura em “Paulo Francis: O Soldado Fanfarrão” (Objetiva, 1996), versão de uma dissertaçã­o de mestrado defendida na USP.

Em vários dos textos lembrados por Moura, Francis defende o recém-criado Círculo Independen­te dos Críticos Teatrais, em contrapont­o à estabeleci­da Associação Brasileira de Críticos Teatrais.

Trata-se de um embate geracional e datado, mas que levanta questões atuais.

Escreve George Moura: “Os objetivos gerais dos Novos Críticos cariocas eram: a existência de críticos sem vínculos financeiro­s com empresas teatrais, independen­tes [...] os Novos precisavam protestar quando percebiam aquele rumor suspeito, testemunha­do pelo jovem Sábato Magaldi, de uma só pessoa ser ao mesmo tempo crítico e publicista”.

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