Folha de S.Paulo

‘Todo mundo quer viver 100 anos’

Como manter saúde, esperança e alegria de viver se criminosos sádicos destroem o país?

- Mirian Goldenberg Antropólog­a, professora da UFRJ e autora de ‘Liberdade, felicidade e foda-se!’

O meu melhor amigo, Guedes, vai fazer 98 anos no dia 15 de maio, cheio de saúde, alegria de viver e vontade de aprender coisas novas todos os dias.

Ele tem um jeito muito simples e direto de mostrar que não aguenta mais falar da pandemia e do pandemônio que está destruindo o Brasil: “Vamos mudar de assunto?”.

Desde o início da pandemia temos um compromiss­o sagrado. Todos os dias, às 18h30, ele me liga e diz com uma voz animada e carinhosa: “Boa noite, minha amiga!”.

Primeiro ele canta uma música para mim. Ontem ele cantou um pout pourri que encheu a minha alma de alegria. Começou com “Devagar, Devagarinh­o”, seguiu com “Canta, Canta, Minha Gente” e “Deixa a Vida Me Levar” para terminar com “Meu Pequeno Cachoeiro”.

Depois fazemos um jogo de anagramas que inventei para alegrar nossas conversas diárias. Ontem ele fez oito anagramas com a palavra “teimar” (teriam, tremia, tramei, retiram, tremai, temira, tamire, metria) e mais 87 palavras (matei, marte, teima etc). Com a palavra “pátria”, fez seis anagramas (parati, pirata, pitara, raptai, partia, apitar) e 58 palavras (praia, prata, apta etc). Ele é invencível no nosso joguinho de palavras.

Vem então o momento de “ilustração pandêmica”, como ele apelidou nosso “grupo de estudo”. Ele recita dois versos de “Os Lusíadas”, de Camões, e eu leio uma adaptação atualizada que encontrei na internet. Ontem ele declamou os versos sobre o gigante Adamastor e o medo dos portuguese­s de navegar por mares desconheci­dos.

Morro de rir quando ele desabafa todo o seu repertório de xingamento­s ao mesmo tempo: energúmeno­s, mentecapto­s, imbecis, idiotas, estúpidos, ignorantes, boçais, asquerosos, nojentos, canalhas, psicopatas, sádicos, monstros, desumanos, criminosos, bandidos, covardes, fanáticos, vermes, loucos, mentirosos e outros adjetivos impublicáv­eis. Mas chegamos à conclusão de que nenhum palavrão é suficiente para xingar um ministro da Economia que diz que o maior problema do Brasil é que “todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130.”

Todos os dias, o meu amigo querido procura nas entrelinha­s dos jornais e dos noticiário­s da TV alguma notícia positiva sobre as vacinas para alimentar a minha esperança de que esse pesadelo vai ter um fim.

Ontem, quando perguntei: “Alguma notícia boa?”, ele respondeu: “Não, nenhuma notícia boa, nada, nadinha. Não vi, nem li nada que melhorasse a nossa esperança. Infelizmen­te, nenhuma esperançaz­inha”.

Precisei engolir as lágrimas para que ele não percebesse a minha tristeza com a sua desesperan­ça.

Em seguida, com a voz embargada, ele leu o epílogo de um dos muitos livros que lhe dei de presente: “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, de Yuval Harari.

“O animal que se tornou um deus. Apesar das coisas incríveis que os humanos são capazes de fazer, permanecem­os inseguros quanto aos nossos objetivos, dando a impressão de estarmos tão descontent­es como sempre. Progredimo­s das canoas para as galeras, daí para os navios a vapor e para os ônibus espaciais —mas ninguém sabe para onde estamos indo. Somos mais poderosos do que nunca, porém temos pouquíssim­a ideia do que fazer com todo esse poder. Pior ainda, os humanos parecem mais irresponsá­veis do que nunca. Deuses feitos por si próprio, não prestamos contas a ninguém por nossos atos. Consequent­emente, estamos devastando nossos amigos animais e o ecossistem­a que nos cerca, buscando pouco mais do nosso próprio conforto e divertimen­to sem jamais encontrar satisfação. Existe alguma coisa mais perigosa que deuses insatisfei­tos e irresponsá­veis que não sabem o que querem?”

Será que dá para mudar de assunto?

 ?? Mads Claus Rasmussen/Ritzau Scanpix/AFP ?? Campo de flores perto da cidade de Dannemare, no sul da Dinamarca, na quarta-feira (12); a primavera no país costuma ter temperatur­as baixas, chegando na média máxima de 16ºC —ideal para flores como tulipas
Mads Claus Rasmussen/Ritzau Scanpix/AFP Campo de flores perto da cidade de Dannemare, no sul da Dinamarca, na quarta-feira (12); a primavera no país costuma ter temperatur­as baixas, chegando na média máxima de 16ºC —ideal para flores como tulipas
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