‘Bela Vingança’ se ancora no DNA da era MeToo
Vencedor do Oscar de melhor roteiro original, longa britânico constrói fantasia de retaliação contra predadores sexuais
CINEMA Bela Vingança **** *
Reino Unido, 2020. Direção: Emerald Fennell. Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Alison Brie. Estreia nesta quinta (13)
Este filme não vai mudar o rumo do cinema, não é o melhor do gênero “drama de vingança protagonizado por mulheres”, do qual fazem parte títulos superiores como “Kill Bill - Volume 1” e “Kill Bill - Volume 2”, de 2003 e 2004, obra de Quentin Tarantino, “Clube das Desquitadas”, de 1996, com Goldie Hawn, Diane Keaton e Bette Midler, e “Carrie”, o clássico de horror de 1976.
A relevância de “Bela Vingança” é apresentar uma perspectiva nova e totalmente casada com o zeitgeist para a cultura machista que empurra para debaixo do tapete o drama do assédio sexual por jovens não criminosos.
É o estupro diferente dos cometidos em becos escuros. São casos que acontecem com mais frequência do que o estupro “clássico”, é o assédio do dia a dia, entre conhecidos, em universidades, festas, happy hours, por colegas, namorados, maridos.
O filme acumula polêmicas desde que foi apresentado pela primeira vez no Festival Sundance, em janeiro de 2020.
O crítico Dennis Harvey, da revista Variety, que estava no evento, publicou uma resenha elogiosa do filme, na qual questionava a atriz britânica Carey Mulligan, de “Educação”, no papel principal.
Em seguida, sugeria que a australiana Margot Robbie, de “Era uma Vez Em... Hollywood” e produtora de “Bela Vingança”, pudesse ter sido a primeira opção para o papel, pela beleza mais incontestável.
Mulligan não gostou e reclamou em dezembro, 11 meses após a publicação da crítica, em entrevista para o jornal The New York Times. “Eu pensei ‘sério?’. ‘Para esse filme, você vai escrever algo assim tão transparente? Agora? Em 2020?’ Não pude acreditar.”
A revista, então, publicou uma nota no alto da resenha de Harvey pedindo desculpas à atriz pelo uso de “linguagem insensível” e pela “insinuação”.
Mulligan achou pouco e, em entrevista em vídeo à Variety, reiterou seu ponto de vista. As redes sociais foram à loucura, com comentários que chegavam perto de afirmar que o crítico era sexista e provavelmente um predador como os homens retratados no filme.
Essa história não poderia ter acontecido em outro momento, tem o DNA da cultura do cancelamento, tão atual nos dias de hoje, e uma boa dose de retaliação feminista, outro fenômeno da nossa era.
E esse é o ponto de partida do roteiro original do filme, premiado com o Oscar.
Escrito e dirigido por Emerald Fennell, uma das roteiristas da série “Killing Eve”, criada por Phoebe Waller-Bridge, de “Fleabag”, e mais conhecida do público como a intérprete de Camilla Parker-Bowles na série “The Crown”, o longa marca a sua estreia no cinema.
Em inglês, o título é “Promising Young Woman”, ou jovem mulher promissora, em tradução literal. Em português é um grande spoiler, um prazer negado ao espectador.
A ideia é apresentar um “revenge drama”, drama de vingança, com o visual e uma trama secundária que o confundem com comédia romântica.
Cassie, personagem de Carey Mulligan, tem quase 30 anos e parece levar vidas distintas. Durante o dia, trabalha no café da amiga Gail, papel de Laverne Cox, de “Orange is the New Black”. À noite, vai à caça. O seu alvo são os cavalheiros, aqueles que podem, ou não, dar um mau passo, mas são, em 99% do tempo, ótimas pessoas.
Ela vai a bares sozinha e finge estar tão bêbada que mal consegue andar. Inevitavelmente aparece um garoto de bom coração que se oferece para a ajudar a ir para casa. No caminho, no entanto, acreditando que ela está sem condições de se opor, tenta fazer sexo sem consentimento.
Antes que o estupro aconteça, ela revela que está sóbria e consciente. Os cavalheiros predadores expostos vão para uma lista que anota num caderninho cor-de-rosa, em que faz a tabulação de quantos desses ela já descobriu.
Cassie abandonou a faculdade de medicina e voltou a morar com os pais após um trauma vivido pela sua melhor amiga, Nina, que estudava com ela e também largou o curso. Ela não tem mais nenhuma ambição, tudo foi substituído pela missão de vingar a amiga e desmascarar potenciais estupradores disfarçados de mocinhos.
As coisas começam a mudar quando um de seus excolegas de faculdade, Ryan, interpretado por Bo Burnham, se interessa por ela na luz do dia, sem fingir que está bêbada, sem roupas provocativas muito menos fazendo algum esforço para agradar.
Um amor verdadeiro pode alterar a trajetória da protagonista? Um bom moço de verdade a pode salvar? Esse spoiler não vai entrar aqui. Basta o título em português.