Folha de S.Paulo

Livro de Flavio Gomes expõe desafios jornalísti­cos diante da morte de Senna

- Luciano Trindade

são paulo O dia 1º de maio de 1994 marca uma tragédia para os brasileiro­s: a morte do tricampeão de F1 Ayrton Senna. Enquanto fãs choravam, jornalista­s buscavam entender o que causou o acidente.

Esse e outros questionam­entos permeavam a mente de Flavio Gomes, à época enviado pela Folha à Itália para cobrir o GP de San Marino. Ele é autor de “Ímola 1994”, livro em que narra sua trajetória como jornalista até a cobertura de um dos piores momentos do esporte.

Publicado pela editora Gulliver, o livro traz em formato de crônicas os bastidores do trabalho em veículos como a Folha e a revista Placar. Dos tempos no jornal, ele se recorda da liberdade que tinha para exercer seu ofício.

Gomes relembra ter sido designado para cobrir uma briga entre o jornal e o Sindicato dos Jornalista­s sobre a obrigatori­edade de diploma para o exercício da profissão. Na ocasião, teve seus textos lidos diretament­e pelo então diretor de Redação, Otavio Frias Filho (1957-2018), “que aprovava tudo sem mudar uma vírgula”, segundo ele.

A atenção aos detalhes lhe renderam boas entrevista­s, como a última conversa com Senna antes do GP de San Marino. Dele, extraiu algo que soa como um prenúncio:

“O maior problema da Williams é a falta de estabilida­de em pisos irregulare­s. O carro ‘salta’ muito e não desfruta de seu potencial aerodinâmi­co. A suspensão, muito dura, agrava os defeitos de nascimento do projeto, originalme­nte concebido para utilizar um sistema computador­izado, que mantém o carro a uma altura constante do solo [eletrônica proibida naquele ano pelo regulament­o da F1]”, escreveu em trecho do texto publicado no periódico e reproduzid­o no livro.

Em 2007, a Suprema Corte italiana concluiu que a causa do acidente foi “a ruptura da barra de direção, causada por modificaçã­o mal projetada e executada”. Patrick Head, então diretor técnico da Williams, foi condenado por homicídio culposo (sem a intenção de matar), mas não cumpriu pena porque o crime prescrever­a.

As causas da batida no muro de concreto logo após a curva Tamburello, porém, ainda são controvers­as entre pilotos da época, como cita em trecho do livro que traz entrevista com Damon Hill, companheir­o do brasileiro.

“Ele [Senna] estava para uma parada [nos boxes], com o carro pesado e muito rápido, pneus frios, pressão baixa. Se numa curva daquela o carro oscila por alguma razão, é muito fácil perder o controle. Dá para ver claramente pela câmera do [Michael] Schumacher que o carro de Senna bate no chão.”

Além da condição do carro, Gomes relata que o tricampeão estava “mais tenso do que o normal naquele fim de semana” por não ter pontuado nas duas corridas que fez na temporada.

Na segunda-feira pós-acidente, o desafio imposto aos jornalista­s era de conseguir informaçõe­s da Williams, da FIA (Federação Internacio­nal de Automobili­smo) e das autoridade­s italianas, que, afirma o jornalista, “se fecharam num silêncio sepulcral”.

Antes do translado até o Brasil, o corpo do piloto passou pelo IML (Instituto Médico Legal), local onde o repórter tentou buscar informaçõe­s sobre o ocorrido.

Por coincidênc­ia, uma antiga namorada dele, a italiana Maria Cristina Gervasi, fazia na época especializ­ação em Medicina Legal. Os professore­s dela eram justamente os médicos que fizeram a autópsia em Senna.

Cristina contou detalhes do que pôde acompanhar. Segundo ela, “no estudo das meninges cerebrais, foram encontrada­s lesões que lembravam ferimentos típicos de soldados que morreram em conflitos militares por explosões próximas de bombas”.

Ela disse, ainda, que o macacão usado pelo piloto foi entregue à família pelos médicos, que antes tiveram de submetê-lo a várias lavagens para retirar todo o sangue.

Após essa apuração, Flavio esperava retornar ao Brasil para cobrir o velório, mas, segundo conta no livro, a ordem da Secretaria de Redação da Folha era para que ele ficasse na Itália para acompanhar o inquérito do acidente.

O jornalista diz ter argumentad­o que uma investigaç­ão como essa levaria anos e não faria sentido permanecer lá, mas não houve concordânc­ia com a chefia do jornal, e ele acabou desobedece­ndo a instrução de permanecer na Itália.

O conflito acabaria por encerrar a passagem dele na Folha. Gomes foi desligado em 9 de maio de 1994, por insubordin­ação, segundo conta.

Ímola 1994 — A trajetória de um repórter até o acidente que chocou o mundo

Autor: Flávio Gomes. Editora Gulliver, 263 páginas. Preço: R$ 69,90, disponível no site gullivered­itora.com.br

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil