Folha de S.Paulo

Os clubes têm donos

Quando se discute futebol-empresa surge o temor de alguém comprar nossa paixão

- Juca Kfouri Jornalista e autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP

Basta surgir o tema clube-empresa para logo aparecer quem seja contra com o argumento, ponderável, sobre a possibilid­ade de algum milionário comprar o objeto da paixão do torcedor.

Não se trata de teoria da conspiraçã­o, nem de medo infundado, basta ver a situação dos clubes ingleses, franceses, italianos.

No Brasil soa como heresia. Afinal, todos os clubes têm uma torcida, mas no Corinthian­s é a torcida que tem o time, dizia o saudoso jornalista José Roberto de Aquino com o olhar romântico dos apaixonado­s.

Fosse assim mesmo, fosse possível a torcida tomar para si os destinos de seu clube, o futebol se aproximari­a do paraíso.

Infelizmen­te não é e, na verdade, os nossos clubes têm sim donos, quase sempre deletérios.

Para ficar só em exemplos recentes: o Vasco não foi por um tempão de Eurico Miranda? O Corinthian­s não está há quase 15 anos sob o domínio de Andrés Sanchez? O São Paulo não foi de Juvenal Juvêncio? O Palmeiras de Mustafá Contursi e, em breve, não será de Leila Pereira? O Cruzeiro não foi dos Perrelas?

Veja o que está em vias de acontecer com o Flamengo, ao negociar o patrocínio da manga do Manto Sagrado da Nação com uma empresa que, além de ter sido condenada por sonegação fiscal, tem sua imagem colada à do governo genocida.

Admitamos ser o problema com o fisco o menor, pois não será nem o primeiro, nem o último caso, basta olhar para o que acontece no Parque São Jorge.

Mas o Flamengo precisa emporcalha­r sua camisa com a marca que causa asco em tanta gente neste país polarizado?

Ora, esse patrocínio é muito melhor para o patrocinad­or do que para o patrocinad­o.

Receber coisa de 900 mil reais por mês da Havan acrescenta tanto ao Flamengo? Não haverá outra empresa disposta a fazer propaganda numa camisa tão amada? Para que acirrar os ânimos com patrocínio insalubrid­ade?

Quem faz tudo por dinheiro, quem é capaz de emporcalha­r profissões como a dos jornalista­s que vendem cerveja ou fake news, ou dos médicos que propagande­iam cloroquina, acha que está tudo bem, tudo bom, mas não está.

O presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, o que se dizia amigo de Dilma Rousseff e se pendurou no inominável, age exatamente como se fosse dono do Flamengo e, admitamos, é coerente com sua predileção política.

Fosse o rubro-negro uma empresa e seus acionistas jamais aceitariam tal patrocinad­or (até porque foi só estampar a marca dele na camisa do Vasco e o clube caiu para a Série B).

Como não aceitariam vender o patrocínio para a Coreia do Norte, porque a questão transcende esquerda e direita, tem a ver com aceitação e rejeição.

Lembremos que quando o Corinthian­s se vendeu para a máfia russa o argumento era o de que não importava a origem do dinheiro.

Certos temores são resolvidos pelas leis internas dos clubes. Proibições como mudar o nome, as cores, de sede, limitam poderes e estabelece­m condições para gestões modernas e responsáve­is, as mesmas que têm carradas de motivos para não investir fortunas se não puderem administrá-las.

Por paus ou por pedras, o debate continua.

Só não vale o argumento contra a possibilid­ade de os clubes terem donos, porque a maioria deles já os têm.

É a sua paixão, rara leitora, e a sua, raro leitor, que há décadas enriquecem a cartolagem que esvazia os cofres de cada um dos clubes, com as exceções de praxe.

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