Folha de S.Paulo

CPI avança e expõe indícios de negligênci­a com vacinas

Cálculo estima que mais de 5.000 vidas seriam salvas se doses da Pfizer fossem compradas antes

- Renato Machado, Julia Chaib e Constança Rezende

O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) ignorou pelo menos cinco ofertas de vacinas feitas pela Pfizer em 2020, declarou nesta quinta-feira (13) à CPI da Covid no Senado o gerente-geral da farmacêuti­ca para a América Latina, Carlos Murillo.

Se selado na época proposta, o contrato teria trazido ao Brasil 4,5 milhões de doses extras de vacinas, ou 20% a mais do que foi aplicado na população até 31 de março. O mês de abril foi o mais mortífero da pandemia no país até agora, com 82,4 mil óbitos.

Cálculo feito a pedido da Folha pelo epidemiolo­gista Pedro Hallal, que coordenou o maior estudo epidemioló­gico sobre o coronavíru­s no país, indica que teriam sido poupadas no mínimo 5.000 vidas e 23 mil internaçõe­s com o imunizante rejeitado.

Após idas e vindas, o Ministério da Saúde fez a encomenda ao laboratóri­o em março deste ano, quando adquiriu 100 milhões de doses, das quais 14 milhões deverão ser entregues até o próximo mês e o restante, ao longo de julho, agosto e setembro.

O depoimento ecoa o do ex-secretário Fabio Wajngarten, segundo quem o governo parou a negociação por dois meses.

O depoimento do gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, à CPI da Covid do Senado nesta quinta-feira (13) reforçou, junto com outros prestados nesta semana, os indícios de que o presidente Jair Bolsonaro negligenci­ou a pandemia.

O representa­nte da Pfizer afirmou que a empresa fez em 2020 ao Brasil ao menos cinco ofertas de doses de vacinas contra o coronavíru­s e que o governo federal ignorou proposta para comprar 70 milhões de unidades do imunizante.

As falas de Murillo confirmam o que foi dito um dia antes na comissão pelo ex-secretário Fabio Wajngarten (Comunicaçã­o), segundo o qual o país deixou parada a negociação com o laboratóri­o durante dois meses.

Na avaliação de senadores do grupo majoritári­o da CPI e integrante­s da equipe do relator Renan Calheiros (MDBAL), ambos os depoimento­s, aliados ao do presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres, indicam negligênci­a por parte do presidente com medidas de combate ao coronavíru­s.

Barra Torres, em oitiva na comissão na terça (11), se contrapôs a discursos negacionis­tas de Bolsonaro e disse que barrou uma tentativa de mudar a bula da cloroquina para indicá-la a casos de Covid-19.

Nesta quinta, Murillo disse à CPI que, se o contrato com a Pfizer empresa tivesse sido assinado pelo governo de Jair Bolsonaro em agosto do ano passado, o Brasil teria disponívei­s 18,5 milhões de doses da vacina até o segundo trimestre (abril, maio e junho) deste ano.

Desse total, 4,5 milhões seriam entregues entre dezembro e março, começando com 1,5 milhão no último mês de 2020.

O Ministério da Saúde só firmou acordo com o laboratóri­o em março, no qual adquiriu 100 milhões de doses, dos quais 14 milhões devem ser entregues até junho, e os 86 milhões restantes, no terceiro trimestre (julho, agosto e setembro).

Segundo informou Murillo, foram entregues até o momento um total de 2,2 milhões de doses.

Em oitiva na comissão de investigaç­ão do Senado, o representa­nte da Pfizer construiu uma linha do tempo. Segundo ele, as negociaçõe­s com o Brasil começaram em maio, e a primeira oferta ocorreu em 14 de agosto. Depois, o laboratóri­o fez mais duas ofertas, em 18 de agosto e 26 de agosto, ambas ignoradas pelo Executivo, como mostrou a Folha no início de março deste ano.

Nas três foram feitas propostas separadas de entregas de dois quantitati­vos: 30 milhões e 70 milhões de doses para entrega parcelada até o final de dezembro de 2021. “A proposta de 26 de agosto tinha validade de 15 dias. Passados 15 dias, o governo não rejeitou e nem aceitou a oferta.”

As duas ofertas previam que ao menos 1,5 milhão de doses chegariam ao Brasil ainda em dezembro de 2020. Como a oferta foi ignorada, segundo Murillo, em novembro as negociaçõe­s foram retomadas com mais duas propostas.

Desta vez, só estava na mesa a possibilid­ade de compra de 70 milhões de doses e não havia mais a chance de alguma vacina da Pfizer chegar em 2020. O Brasil receberia 8,5 milhões de doses nos dois primeiros trimestres de 2021.

Já neste ano, em 15 de fevereiro, a Pfizer fez nova oferta ao governo. Só havia uma proposta na mesa, para a compra de 100 milhões de doses. Mais uma vez, a gestão Bolsonaro não fechou o acordo.

Em 8 de março, de acordo com o representa­nte da farmacêuti­ca, foi feita mais uma oferta, semelhante à de fevereiro, para a entrega de 100 milhões de doses, sendo 14 milhões no segundo trimestre de 2021 e mais 86 milhões no terceiro trimestre —esta foi aceita pelo Brasil.

Murillo disse que só ficou confiante com o fechamento do acordo para o fornecimen­to da vacina com o governo brasileiro no dia 19 de março deste ano, quando o contrato de fato foi assinado.

Durante a oitiva desta quinta, senadores, entre eles o presidente da CPI, Omar Aziz (PSDAM), fizeram questão de ressaltar o cálculo feito pelo gerente-geral da Pfizer de que, caso o Brasil tivesse firmado um trato no ano passado, poderia ter recebido 18,5 milhões de doses até agora.

Isso porque pela oferta feita em agosto do ano passado, teriam sido entregues 1,5 milhão de doses em dezembro, 3 milhões no primeiro trimestre (janeiro, fevereiro e março) e 14 milhões no segundo trimestre (abril, maio e junho).

Em depoimento, Murillo confirmou a conversa telefônica mencionada por Wajngarten e que envolveu Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Murillo afirmou que telefonou ao ex-secretário ao ter conhecimen­to de um email de Wajngarten para o CEO global da Pfizer, sobre um ofício da empresa que estava parado havia dois meses no governo.

De acordo com ele, o secretário inicialmen­te se inteirou das tratativas e depois seguiu para o gabinete de Bolsonaro, que recebia Guedes.

“O ministro Guedes perguntou o quantitati­vo ofertado. Ele indicou que o Brasil precisava de mais quantidade e eu respondi que nós vamos procurar oferecer maior quantitati­vo”, declarou.

No dia anterior, Wajngarten havia trazido a informação do telefonema. Em seu relato, afirmou que o presidente escreveu em um papel a palavra “Anvisa”, indicando que seria necessário primeiro a autorizaçã­o da agência de vigilância sanitária. E Guedes, segundo afirmou, teria dito “vacina é o caminho”.

A Anvisa deu registro definitivo à vacina da Pfizer em 23 de fevereiro passado. Ela foi aprovada pela agência de vigilância dos Estados Unidos em novembro de 2020 e poderia ter pedido o aval para uso emergencia­l para uso no Brasil em dezembro, caso assim se mobilizass­em as autoridade­s que negociavam a vacina.

Em depoimento à CPI, o presidente da Anvisa disse que a agência não tem discrimina­ção contra nenhuma vacina e age de modo técnico.

O gerente-geral da Pfizer também disse que as condições impostas para a venda de vacinas ao governo brasileiro não eram “leoninas”, como descreveu o ex-ministro Eduardo Pazuello como justificat­iva para a demora na compra de doses. “Não estou de acordo com essa categoriza­ção de que as condições eram leoninas.”

Murillo afirmou que as condições eram, em linhas gerais, as mesmas oferecidas para outros países, com pequenas variações por causa das peculiarid­ades de cada localidade.

As condições impostas pela empresa, que exigia imunidade por eventuais efeitos colaterais da vacina e queria garantias de pagamentos no exterior, entre outros pontos, foram apontadas pelo governo brasileiro como obstáculo para a aquisição da imunização.

Mais à frente no depoimento, o gerente-geral da Pfizer confirmou a participaç­ão do vereador Carlos Bolsonaro (Republican­os-RJ) em reunião para tratar da compra de vacinas.

Murillo disse que duas representa­ntes do jurídico da empresa mantinham reunião no Palácio do Planalto com Fabio Wajngarten e seus auxiliares, para esclarecer pontos relativos à aquisição da vacina e possíveis entraves.

Em determinad­o momento, após uma hora de reunião, aproximada­mente, Wajngarten recebeu um telefonema e deixou a sala de reunião. Minutos após o retorno do exsecretár­io, entraram na sala Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, e o assessor internacio­nal da Presidênci­a, Filipe Martins.

A declaração reforça a tese que está em construção pelo grupo de senadores majoritári­o da CPI, que avalia existir um “ministério paralelo” ao da Saúde que orienta e define as medidas que serão adotadas no combate à pandemia.

A confirmaçã­o do gerenteger­al da Pfizer contrasta com a fala de Wajngarten, que falou que via o vereador Carlos Bolsonaro com “muito pouca frequência”.

Wajngarten havia sido questionad­o se já havia participad­o de reuniões com o filho do presidente e disse: “Nunca fui próximo dele, nunca tive intimidade com ele, nunca tive relação qualquer com ele”.

Após a sessão desta quinta, o relator Renan Calheiros afirmou que a confirmaçã­o dada pelo executivo da Pfizer é uma comprovaçã­o de atuação “indevida”.

Nesta quinta, os senadores governista­s da CPI da Covid recorreram novamente aos argumentos apresentad­os por Eduardo Pazuello para justificar a demora na assinatura do contrato. Afirmaram que as cláusulas eram impraticáv­eis e que o Brasil só adaptou a legislação ao que a Pfizer exigia neste ano, ou seja, não poderia ter firmado trato no ano passado.

Além disso, os aliados de Bolsonaro também tentaram mostrar que a quantidade de doses que chegaria ao país no início deste ano seria baixa.

Os dados apresentad­os por Murillo apontam que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello errou em argumentos que deu a senadores para justificar o motivo de o Brasil não ter assinado acordo com a Pfizer no ano passado.

“A Pfizer, mesmo que nós aceitássem­os todas as condições impostas, a quantidade que nos ofereceram desde o início foi: 500 mil doses em janeiro, 500 em fevereiro e 1 milhão em março; 6 milhões no total no primeiro semestre. Senhores, nós não podíamos ficar nisso”, afirmou Pazuello em depoimento ao plenário do Senado Federal, em 11 de fevereiro último.

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Jefferson Rudy/Agência Senado Carlos Murillo, gerente-geral da Pfizer na América Latina, depõe à CPI
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