Folha de S.Paulo

Ataque a ministro alveja a democracia

Quando um ministro do STF está sujeito ao arbítrio, então é certo que o problema é de ‘Todo Mundo’

- Reinaldo Azevedo

É grande a tentação de tecer consideraç­ões sobre o depoimento de Fabio Wajngarten na CPI da Covid. Ou de nominar os vagabundos com uma arma na mão e ideias genocidas na cabeça. Mas, a esta altura, nada há de tão contundent­e a dizer sobre o desgoverno que seus próceres não digam com mais eficiência.

A mim me interessa saber como chegamos aqui. Mais importante para o futuro do país é o pedido de abertura de inquérito contra o ministro Dias Toffoli, feito por Bernardo Guidali Amaral, delegado morista da PF.

Ou bem nos afinamos com o devido processo legal ou estamos condenados à crise permanente. Jair Bolsonaro não caiu da árvore dos acontecime­ntos rotineiros. É o mal que brotou na terra devastada, em que se conjuraram todos os ódios contra a institucio­nalidade. Aqui e ali, vejo até jornalista­s de boa-fé a indagar: “Mas, afinal, aquilo que Sérgio Cabral delatou não tem de ser investigad­o?”. A simples pergunta já carrega a semente da destruição do Estado de Direito e da própria democracia. O ato de Guidali afronta fundamento­s da já amalucada lei de delações.

Até a Lava Jato do Rio havia se negado a celebrar um acordo com Cabral, assim como a de Curitiba recusara a proposta de Antonio Palocci. A PF tomou para a si a empreitada. Contra a manifestaç­ão da Procurador­ia-Geral da República, Edson Fachin homologou o acordo. Inquéritos foram abertos e encerrados após nova manifestaç­ão da PGR. E havia o tal anexo contra Toffoli, anteriorme­nte recusado pelo próprio MPF.

Não é persecução penal, mas caçada pessoal. A lei 12.850 — excrescênc­ia aprovada em 2013, quando Dilma estava nas cordas em razão dos delírios opostos e combinados que tomavam as ruas— torna o país refém ou de chantagead­os pelo que chamo Papol (Partido da Polícia, que inclui setores da PF, do MP e do Judiciário) ou de pilantras, como Cabral e Palocci, que resolvem falar depois de saberem o que não sabem sobre eles.

O pedido de investigaç­ão contra Toffoli é um acinte e um deboche. Cabral, que se confessou “viciado em poder e dinheiro” —e seria, então, de se indagar por que estaria curado—, afirma a um policial federal que ouviu dizer que o ministro, quando no TSE, teria vendido uma sentença. O que há além da fala do delator? Nada!

Foi o bastante para Guidali. É o mesmo delegado que teve a ousadia de pedir, em 2019, a prisão temporária da ex-presidente Dilma Rousseff para que esta, alegou ele, não criasse obstáculos a uma investigaç­ão sobre algo supostamen­te ocorrido cinco anos antes. Estupefaci­ente! Essa rotina de abusos tem de ter fim.

Não é aceitável uma lei que permita a delação “em qualquer fase da persecução penal”, como está no texto, ou bandidos conduzirão a Justiça e a polícia, ao invés de ser conduzidos. Não é aceitável ter um Ministério Público com poder de polícia, o que a Constituiç­ão não lhe confere. Não é aceitável uma Polícia Federal com poder de Ministério Público, o que a lei também não lhe faculta. Eis uma boa pauta para Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara. Mas ele está muito ocupado tentando cassar prerrogati­vas da oposição ou alimentand­o teorias conspirató­rias sobre urna eletrônica.

Engana-se quem acha que essa questão diz respeito apenas a Toffoli. Como numa peça de Gil Vicente, ela fala de “Todo Mundo” e de “Ninguém”. Quando um ministro do STF está sujeito ao arbítrio, então é certo que o problema é de “Todo Mundo”, e, por consequênc­ia, “Ninguém” está seguro.

A força-tarefa do Rio recusou a patuscada de Cabral, mas a Lava Jato era e, em espírito, é mais ampla do que o Ministério Público. E, por isso, um bolsão da PF resolveu levar a farra acusatória de Cabral adiante. Duvido que Guidali acredite que o caso prosperará. Ocorre que a eficácia da iniciativa não está na abertura da investigaç­ão —que se sabe impossível nos termos dados—, mas na depredação do STF. Nesse sentido, o objetivo foi alcançado.

A quem interessa? A todos os autoritári­os que ajudaram a matar quase 430 mil pessoas. Bolsonaro e a necropolít­ica são legados do ataque às instituiçõ­es, de que o pedido do delegado morista é expressão.

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