Folha de S.Paulo

O velho país dos ‘suspeitos’

O suspeito de ser escravo do século 19 é o morador das favelas e periferias do século 21

- Silvio Almeida

No século 19, o negro que fosse pego “vagando pela rua” poderia ser detido por “suspeita de ser escravo”. No século 21, a polícia do Rio trata os mortos pela operação no Jacarezinh­o como “suspeitos” —e, note-se, a imprensa aderiu com facilidade à retórica da suspeição.

No Brasil, geralmente o que se apresenta como novo na política sempre traz o cheiro de coisa velha e mofada.

Não falo aqui da velhice cronológic­a, aquela da qual nada escapa. Falo de uma velhice reativa, do tipo que não aceita ser ultrapassa­da e que sempre arruma um jeito de reaparecer de forma diferente.

Nada foi mais significat­ivo dessa renovação da velhice do que a entrevista coletiva concedida por membros da Polícia Civil do Rio após a morte de 29 pessoas em operação na favela do Jacarezinh­o. Nas falas dos policiais, o Brasil, mais uma vez, renasceu. Renasceu mais podre e mais anoso. Ou morreu de novo, como queiram.

O velho Brasil aparece nos detalhes, e o uso da palavra “suspeito” para se referir aos mortos pela ação da polícia é exemplo disso. Se o uso do termo pelos representa­ntes da Polícia Civil chama a atenção, também é perceptíve­l a facilidade com que a imprensa aderiu à retórica da suspeição. Aliás, o papel da imprensa é fundamenta­l para que condutas que, em outras circunstân­cias, seriam considerad­as invasão de domicílio, abuso de autoridade, fraude processual e homicídio transforme­m-se em “luta contra o crime”.

O livro “Retrato em Branco e Negro”, de Lilia Schwarcz, é bastante elucidativ­o desse processo que transforma novidade em coisa velha aqui em terras brasileira­s. No mencionado livro, a autora demonstra como a imprensa paulista no final do século 19 atuou “na construção e manipulaçã­o das representa­ções sobre o negro cativo ou liberto, quando se intensific­avam as rebeliões negras”. Nas palavras da autora, a intenção primordial do livro é “apresentar os modos com que os brancos se referiam aos negros e o representa­vam” num momento de profundas mudanças sociais, que naquele momento culminaria­m na abolição, na República e em na reconfigur­ação do racismo no Brasil.

Ao analisar os jornais da época, Lilia Schwarcz constata que ao tempo da escravidão todos eram considerad­os escravos até prova em contrário. Se não conseguiss­e provar a própria liberdade, o negro que fosse pego “vagando pela rua” (“vagabundo”, portanto) poderia ser detido por “suspeita de ser escravo”.

Ao não comprovare­m ser “homens decentes” deveriam então ser considerad­os escravos fugidos e levados de volta ao cativeiro. Além da “suspeita de escravo”, negros eram também detidos “por desordem”, bebedeira ou “por andar sem bilhete após o toque de recolher”.

Conclui a autora que tais motivações vagas possibilit­avam o arbítrio policial e se escoravam em uma visão que via o negro, mesmo livre, como um “degenerado”, seja por não ter ocupação, seja por não estar adaptado “às condições ‘civilizada­s’ da vida nas cidades”.

Como se pode notar pela similarida­de com o discurso escravocra­ta do século 19, os agentes da Polícia Civil trouxeram à tona o ódio aos pobres, aos trabalhado­res e aos negros pacienteme­nte cultivado pela sociedade, mesmo em tempos ditos republican­as e liberais.

A novidade de 2021 talvez seja o fato de que, dado o avançado grau de decomposiç­ão econômica e política, já não seja preciso —e nem possível— disfarçar esse ódio com arranjos jurídico-institucio­nais.

Desse modo, a fragilíssi­ma fronteira da legalidade que separava, ao menos no campo das aparências, feitor de escravo e agente de segurança, e mais tarde, policial de miliciano, talvez agora não mais exista. Os recados enviados ao STF e às entidades de direitos humanos durante a coletiva de imprensa são indícios fortes de que os poderes selvagens já se estabelece­ram e que não aceitarão passivamen­te qualquer tentativa de contenção.

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