Folha de S.Paulo

Brasil tem responsabi­lidade de liderar solução para o clima

Para enviado especial do presidente americano, Joe Biden, ‘palavras devem ser apoiadas pela ação concreta a curto prazo’

- John Kerry

Enviado especial para o clima do governo dos EUA e principal elo da relação diplomátic­a com o Planalto, John Kerry diz que o Brasil tem responsabi­lidade de liderar a solução da crise climática, sob esquema traçado pela equipe de Joe Biden.

À Folha o americano afirma estar disposto a negociar com Jair Bolsonaro, mas reforça que sua credibilid­ade será pavimentad­a sobre ações e resultados imediatos, além de uma “redução significat­iva” do desmatamen­to em 2021.

Enviado especial para o clima do governo americano e principal elo da relação diplomátic­a entre a Casa Branca e o Planalto, John Kerry diz que o Brasil tem responsabi­lidade de liderar a solução para a crise climática, sob um esquema de fiscalizaç­ão e cobrança desenhado pela equipe do presidente Joe Biden.

Em entrevista exclusiva, por email, Kerry se diz disposto a negociar com o presidente Jair Bolsonaro, sem discutir sanções, mas reforça que a credibilid­ade do líder brasileiro, conhecido por sua política ambiental negligente, vai ser pavimentad­a sobre ações e resultados imediatos, além da exigência de uma “redução significat­iva” do desmatamen­to ilegal ainda em 2021.

“O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e líder regional, o país tem a responsabi­lidade de liderar”, diz.

Chamado de czar do clima de Biden, o ex-secretário de Estado americano afirma que os EUA vão acompanhar de perto as medidas tomadas pelo governo brasileiro para cumprir as promessas feitas por Bolsonaro durante a Cúpula de Líderes sobre o Clima, convocada por Biden em abril. “As palavras devem ser apoiadas pela ação concreta a curto prazo”, afirma o americano.

Em seu discurso no mês passado, o presidente brasileiro prometeu dobrar os recursos para fiscalizaç­ão ambiental, antecipou em dez anos a meta para alcançar a neutralida­de climática, agora para 2050, e se compromete­u a acabar com o desmatamen­to ilegal até 2030, o que já estava previsto no Acordo de Paris.

Um dia depois, porém, Bolsonaro oficializo­u um corte de quase R$ 240 milhões no orçamento do Ministério do Meio Ambiente, o que alarmou Kerry. O americano diz que o governo brasileiro garantiu diretament­e a ele que haverá uma recomposiç­ão dos recursos, mas espera confirmar a veracidade da promessa.

Questionad­o sobre a possibilid­ade de confiar em Bolsonaro, que já ameaçou usar “pólvora” contra os Estados Unidos “quando acaba a saliva”, sinalizou que não compra a ideia de que o líder brasileiro mudou completame­nte de postura. “No Brasil, ações e resultados mostrarão a credibilid­ade dos compromiss­os.”

A complacênc­ia com Bolsonaro interessa a Biden, que tenta se consolidar como líder em uma nova configuraç­ão geopolític­a mundial, ditada pelo clima. Nesse cenário, Kerry sabe que o Brasil é personagem-chave, com 60% da floresta amazônica em seu território, assim como a China, principal emissora de poluentes e grande rival americana.

“Fazer com que a China faça mais é fundamenta­l para o nosso sucesso coletivo sobre o clima”, afirma o enviado.

Qual a avaliação geral sobre a Cúpula de Líderes sobre o Clima?

O presidente Biden, o secretário [de Estado, Antony] Blinken e eu ficamos muito satisfeito­s com a cúpula, reunindo as principais economias do mundo para encontrar maneiras de resolver a crise climática de maneira coletiva. A cúpula foi um passo importante a caminho para a conferênci­a climática da ONU, em Glasgow, em novembro, e vamos procurar todos —governos, indivíduos, sociedade civil, instituiçõ­es e empresas privadas— para assumir a liderança na resolução da crise climática. Agradeço a todos os líderes que participar­am da cúpula, incluindo o presidente Bolsonaro.

O que achou do discurso que Bolsonaro fez na cúpula? As promessas do presidente brasileiro foram suficiente­s?

Achei que as observaçõe­s do presidente Bolsonaro foram construtiv­as e úteis. Seu compromiss­o de alcançar a neutralida­de de carbono dez anos antes do que o Brasil havia prometido anteriorme­nte é significat­ivo, assim como dobrar os recursos disponívei­s para a fiscalizaç­ão [ambiental], um passo crucial para eliminar o desmatamen­to ilegal até 2030.

É vital envolver povos indígenas e comunidade­s tradiciona­is para proteger áreas florestais e de biodiversi­dade, e concordo com o reconhecim­ento de Bolsonaro de que todos —países, empresas, entidades e pessoas— devem estar envolvidos para ajudar a encontrar soluções. Os anúncios do presidente Bolsonaro foram um passo importante, e agora vamos acompanhar como o Brasil toma medidas para implementa­r esses compromiss­os e fazer o que pudermos para apoiar esse processo.

Como em todos os países, as palavras devem ser apoiadas pela ação concreta a curto prazo. Todos nós precisamos tomar medidas ambiciosas agora para alcançar nossas metas até o final deste ano, até 2030, e até 2050. Se quisermos resolver a crise climática, precisarem­os de um esforço global e de toda a sociedade, e isso inclui o setor privado. Esta é uma crise urgente, mas também é uma oportunida­de econômica incrível. Encorajo os líderes empresaria­is brasileiro­s a pensar o que mais eles podem fazer que seria bom tanto para o mundo quanto para o lucro deles.

Em seu discurso, Bolsonaro disse que dobraria os recursos para fiscalizaç­ão ambiental, mas um dia depois, cortou o orçamento de órgãos e programas relacionad­os às mudanças climáticas e à conservaçã­o ambiental. Como o governo dos EUA vê essa ação?

O governo brasileiro nos garante que está discutindo o orçamento internamen­te e que encontrará recursos para cumprir os compromiss­os. Como outros, vamos procurar confirmaçã­o de que esse compromiss­o foi cumprido.

Houve algum país que surpreende­u o senhor de forma positiva durante a cúpula, ou um que o decepciono­u?

Fiquei especialme­nte impression­ado com os anúncios do Canadá e do Japão. E o movimento da União Europeia para colocar sua meta de 2030 em lei, além da meta do Reino Unido para 2035 são, naturalmen­te, muito encorajado­ras. Houve outros anúncios notáveis: 55% das economias mundiais agora estão no caminho para manter o aqueciment­o da Terra a não mais de 1,5 ºC, que é o que os cientistas estão nos dizendo que devemos fazer para evitar os efeitos mais catastrófi­cos da crise climática. Os países estão indo na direção certa, mas devemos fazer mais e devemos fazer urgentemen­te. Precisamos conquistar os outros 45%.

Um porta-voz do Departamen­to de Estado disse que Bolsonaro adotou um tom positivo e construtiv­o na cúpula, mas sua credibilid­ade com os Estados Unidos dependerá de “planos sólidos e foco nos resultados”. Quais são esses planos e resultados? Que número o Brasil tem que atingir neste ano, em termos de diminuição do desmatamen­to?

O presidente Bolsonaro se compromete­u a zerar o desmatamen­to ilegal no Brasil até 2030 e alcançar a neutralida­de climática até 2050. Para atingir qualquer uma dessas metas, o Brasil precisará tomar medidas imediatas para reduzir significat­ivamente o desmatamen­to em 2021.

Em que circunstân­cias os Estados Unidos considerar­iam colocar qualquer tipo de sanção ou outra punição ao Brasil pelo fracasso do país em proteger a Amazônia?

Essa opção não está sendo discutida.

O ministro do Meio Ambiente do Brasil, Ricardo Salles, pediu diretament­e US$ 1 bilhão para reduzir o desmatamen­to da Amazônia em até 40% em um ano. Ele disse que, sem dinheiro de forma antecipada, não se compromete­ria com números. Por que os EUA não deram dinheiro ao Brasil antecipada­mente? Existe um cronograma para a chegada dos primeiros recursos?

Os EUA estão engajados e continuarã­o a se engajar em uma série de programas no Brasil. O enfrentame­nto da crise climática requer parcerias globais com grandes impactos, e o Brasil será um parceiroch­ave na busca e implementa­ção das soluções para esta crise. O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e líder regional, o país tem a responsabi­lidade de liderar.

O governo dos EUA reconhece e respeita a soberania do Brasil no enfrentame­nto dos desafios ambientais, e podemos construir nosso forte histórico de cooperação ambiental para alcançar metas mais ambiciosas. Espero ver um progresso claro para concretiza­r o compromiss­o de acabar com o desmatamen­to ilegal, incluindo medidas tangíveis para aumentar fiscalizaç­ão, além de fortes sinais de que desmatamen­to ilegal e invasão não serão tolerados.

Apesar do tom no discurso na cúpula, a política ambiental de Bolsonaro sempre

foi negligente. No ano passado, em resposta à sugestão de Biden de que o Brasil poderia enfrentar consequênc­ias se não limitasse o desmatamen­to, Bolsonaro disse: “Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”. Por que acha que é possível confiar em Bolsonaro?

No Brasil, assim como em outros lugares, ações e resultados mostrarão a credibilid­ade dos compromiss­os.

Como os EUA podem pressionar outros países sobre mudanças climáticas quando ainda é um dos maiores emissores de carbono do mundo e não reduziu substancia­lmente as próprias emissões?

Reconheço que a falta de ação climática do governo federal dos EUA nos últimos quatro anos nos fez recuar, mas também notei que o setor privado e a sociedade civil dos EUA continuara­m a progredir. Este momento exige esforços e soluções ousadas. O presidente Biden sabe que as apostas na crise climática nunca foram tão altas como são hoje. É por isso que, logo após sua posse, voltou ao Acordo de Paris e assinou uma série de ordens executivas para orientar o governo dos EUA a tomar medidas ousadas no país e no exterior para enfrentar a crise climática. E é por isso que na cúpula do mês passado ele anunciou uma nova e mais ambiciosa meta de emissões para os EUA [reduzir pela metade as emissões de gases de efeito estufa em relação aos níveis de 2005]. Acredito que nossos novos compromiss­os demonstram que nós mesmos estamos dispostos a tomar o tipo de ação decisiva que estamos pedindo aos outros.

China e Índia não se compromete­ram com números ambiciosos de redução de emissões para a próxima década. Como os planos climáticos de Biden podem ter sucesso sem dois dos principais emissores?

Vemos a Índia como um forte parceiro na inovação de que precisamos para a transição do mundo rumo à energia limpa e continuare­mos a trabalhar com eles na ambição climática. A China é o maior consumidor de carvão do mundo e é responsáve­l por 30% das emissões mundiais. Por isso, é claro, fazer com que a China faça mais também é fundamenta­l para o nosso sucesso coletivo sobre o clima.

Quais vantagens Biden tem sobre o ex-presidente Barack Obama quando se trata de abordar grandes crises, dado que, depois de Donald Trump, parece haver mais apetite no Congresso e entre a população para ações agressivas sobre o clima, a pandemia e a economia?

Acho que você está certa em dizer que vimos uma grande mudança na opinião pública: há um acordo mais forte e apoio à ação nos níveis internacio­nal, nacional e local. Acho que muitos de nós neste governo trazemos a vantagem da experiênci­a, combinada com uma abertura às ideias de nossos colegas e amigos mais jovens.

“O enfrentame­nto da crise climática requer parcerias globais com grandes impactos, e o Brasil será um parceiro-chave na busca e implementa­ção das soluções para esta crise. O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e líder regional, o país tem a responsabi­lidade de liderar

 ?? Al Drago - 22.abr.21/The New York Times ?? John Kerry, 77
Advogado e ex-oficial da Marinha americana, foi Secretário de Estado durante o governo Barack Obama, de 2013 a 2017, e senador e vicegovern­ador por Massachuse­tts. Em 2004, concorreu à Presidênci­a dos EUA pelo Partido Democrata, mas foi derrotado por George W. Bush. É o enviado especial para o clima do governo Joe Biden
Al Drago - 22.abr.21/The New York Times John Kerry, 77 Advogado e ex-oficial da Marinha americana, foi Secretário de Estado durante o governo Barack Obama, de 2013 a 2017, e senador e vicegovern­ador por Massachuse­tts. Em 2004, concorreu à Presidênci­a dos EUA pelo Partido Democrata, mas foi derrotado por George W. Bush. É o enviado especial para o clima do governo Joe Biden

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