Folha de S.Paulo

Alucinação coletiva

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Organismos vivos desenvolve­ram sentidos como visão, audição, propriocep­ção, ecolocação para captar instâncias daquilo que chamamos de realidade e se posicionar de forma mais adequada para sobreviver e deixar descendênc­ia. Mas é claro que nada é tão simples.

As informaçõe­s que chegam pelos sentidos nem sempre permitem interpreta­ções unívocas; por vezes, estão em contradiçã­o umas com as outras. O cérebro, que não pode se dar ao luxo de esperar até que só existam certezas, se vale de uma miríade de elementos extrassens­oriais, como expectativ­as, preferênci­as e até manias, para dar sentido à profusão de dados que lhe chegam a cada instante. É nesse contexto que alguns neurocient­istas descrevem a percepção como uma alucinação controlada.

Alucinação é um bom jeito de explicar os resultados da última pesquisa Datafolha que avaliou a percepção dos brasileiro­s sobre o governo de Jair Bolsonaro.

A aprovação à administra­ção até que caiu —e não pouco. O percentual de entrevista­dos que classifica o governo como ótimo ou bom passou de 30% em março, quando foi feita a sondagem anterior, para 24% agora. As avaliações negativas, porém, seguem mais ou menos inalterada­s. Eram 44% e são agora 45%.

O que me incomoda aqui —e me faz pensar em alucinação coletiva— é que a reação da opinião pública é tardia e insuficien­te. Não estamos, afinal, falando de um governo normal atuando em tempos normais, mas de uma administra­ção que vem cometendo equívocos em série durante a pior emergência sanitária dos últimos cem anos. Já contamos quase meio milhão de mortes, dezenas de milhares das quais teriam sido evitadas se a gestão tivesse respondido à crise de forma apenas medíocre.

Se a opinião pública brasileira fosse um bicho, já teria sido extinta por não ter conseguido interpreta­r corretamen­te os dados fornecidos pela realidade e reagido de forma a preservar a própria existência.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil