Agro, China e o impensável
Discurso sobre superpoderes do agro e apetite infinito da China podem iludir
Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC
Num webinar recente, um comentário me chamou a atenção. O assunto eram as importações chinesas de produtos agrícolas.
Um participante mencionou os esforços do país asiático para diversificar mercados fornecedores. Sem hesitar, outro respondeu ser praticamente impossível reduzir a dependência do Brasil, embasando o otimismo em dados sobre a competitividade do agronegócio brasileiro.
Naquele momento, eu estava concluindo um estudo sobre cenários para o comércio ChinaAmérica Latina e Caribe (ALC) em 2035. Publicado nesta semana pelo Atlantic Council, o estudo, em coautoria com David Bohl e Pepe Zhang, aponta que o agro tende a perder espaço na pauta exportadora da região — e do Brasil — para a China.
Hoje produtos agrícolas respondem por mais de 40% do que a ALC exporta para os chineses. No cenário mais dramático, esse percentual pode ficar próximo dos 20% em 2035, diz o estudo.
Para quem pensa na competitividade atual do agro do Brasil e de alguns dos seus vizinhos, o dado surpreende —confesso que me surpreendeu, tão habituada que estou à conversa sobre os superpoderes do agro e o apetite sem fim dos chineses.
O objetivo do estudo obviamente não é prever o futuro, mas apenas construir cenários possíveis. Além disso, dados agregados da região escondem diferenças significativas entre países.
Ainda assim, vários elementos contribuiriam para o cenário de menor importância relativa do agro nas exportações para a China em 2035. Em primeiro lugar, os esforços chineses para aumentar a produtividade no campo são reais. Máquinas agrícolas —para a surpresa de muitos— estão ao lado de tecnologia da informação na lista de prioridades do Made in China 2025, peça chave da política industrial do país. Agritech, movido a 5G, contribuirá também para ganhos de produtividade.
Outros países estão se tornando mais competitivos no mercado chinês. A Indonésia, por exemplo, que respondeu por 4% das importações agrícolas da China em 2020, chegaria a 7,5% num dos cenários. A Tailândia igualmente ganharia espaço.
Há também mudanças na demanda chinesa. É verdade que a urbanização ainda avança e que há aumento de riqueza per capita na China, mas o fator demográfico —com a diminuição da população— joga contra as expectativas de aumento acelerado de exportações agrícolas.
Como nunca nos seus 40 anos de abertura econômica, dependência externa é vista como vulnerabilidade. Aumentar capacidade de produção e diversificar fornecedores contribuem para mitigar riscos —e é isso que os chineses buscam quando priorizam segurança alimentar.
O modelo que baseia o estudo do Atlantic Council estima, no entanto, um aumento das exportações globais do agronegócio da ALC —mas serão outros mercados a contribuir para a demanda externa aquecida. A África, em particular, ajudará a compensar a perda de dinamismo das vendas para a China.
Análises de comércio quase sempre olham pelo retrovisor, focam-se em dados do passado. Ou, como diz um amigo, resumem-se a perguntas de elevador: subindo? Descendo?
A construção de cenários nos força a pensar no “e se”. É um ótimo antídoto anticomplacência para quem se acostumou a ver exportações do agro para a China registrarem recordes após recordes. Para quem desdenha o mercado africano. Para quem acha que a China depende mais do Brasil do que o contrário.