Folha de S.Paulo

Dados são fatos, e inflação bate à porta; tempos são difíceis para o Fed

- Roberto Dumas Damas

Professor de economia do Insper, mestre em economia pela Universida­de de Birmingham, na Inglaterra, e mestre em economia pela Universida­de Fudan, na China

Em que pese o discurso “dovish” (apaziguado­r, em tradução livre) de Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano), sobre a transitori­edade da inflação dos EUA, o fato é que os dados mais recentes continuam mostrando um recrudesci­mento no aumento geral de preços.

Em base anualizada, o Índice de Preços ao Consumidor de abril subiu 4,2%, o maior aumento desde 2008 e bem maior que os 2,6% observados em março deste ano.

É bem verdade que, em 2020, Powell já havia dito que toleraria um pouco mais de inflação ou acima da meta informal de 2%, mas parece que a corda continua sendo puxada demais. Mesmo excluindo itens voláteis, como alimentos e energia, o IPCcore (núcleo do índice) subiu de 1,6% em março para 3% em abril (base anualizada).

Certo ou errado sobre o caráter transitóri­o da inflação, duas coisas são fato:

1) trata-se de dados, e não mais projeções;

2) os agentes econômicos continuam ainda mais receosos com essa tendência suscitando sell-off de Bolsa e bonds. Juros maiores lá fora acabam freando um pouco a tendência de apreciação da nossa moeda por aqui, pelo menos a curto prazo.

O desafio é claro para o Fed e o governo Biden: como fazer a economia continuar em seu voo de cruzeiro, com juro de zero a 0,25%, afrouxamen­to monetário de US$ 120 bilhões por mês, com compras de títulos do governo e de agências governamen­tais e o expansioni­smo fiscal esperado de US$ 6 trilhões?

Estímulo é o que não falta, apesar de alguns dados mostrarem algo diferente, como foi o caso de a criação de empregos em abril ter sido de 266 mil, e não próximo de 1 milhão, como se esperava.

Mas será que o Fed sairá correndo atrás da ambulância e reverterá seu discurso “dovish” com esses dados?

Acho difícil, pois uma guinada de 180º no discurso expansioni­sta e tranquilo do presidente do Fed mostraria nas entrelinha­s uma enorme falta de consistênc­ia e percepção inflacioná­ria por parte da maior autoridade monetária do mundo.

Ninguém gostaria de se sentir no Costa Concordia com o comandante Schettino sem saber o que fazer.

Entretanto, há de levar a sério. Gostem ou não, esses dados são fatos, e não projeções, e a inflação bate à porta.

Mas será que voltaremos a ver inflações nos EUA como nos anos 1970? Dificilmen­te.

Os anos 1970 foram marcados pelo fim do sistema de Bretton Woods, que permitia que o Fed emitisse US$ 35 para cada onça-troy (31,1 g) de ouro depositado no Forte Knox e outros países-membros do sistema poderiam emitir suas moedas, desde que tivessem ouro como lastro ou dólar americano, denotando assim o caráter fixo das paridades cambiais.

Com o fim da janela do ouro pelo então presidente Richard Nixon (1971), o dólar depreciou-se largamente.

Some-se a isso o primeiro choque do petróleo, advindo justamente do fim do sistema de Bretton Woods, o segundo choque do petróleo, dessa vez causado pela queda do xá Reza Pahlavi, a subida do aiatolá Khomeini ao poder culminando com a Revolução Iraniana (1979), e a influência perniciosa e política de Nixon junto ao então presidente do Fed, Arthur Burns, exigindo maior expansioni­smo monetário em vista à sua reeleição para presidente em 1972.

Com a subida do então novo presidente do Fed, Paul Volcker, em 1979, iniciou-se um mais efetivo controle da inflação com um contracion­ismo monetário traduzido em altas taxas de juros, o que acabou culminando com a crise das dívidas externas do Brasil, do México e da Argentina —países que haviam se deliciado com a enorme liquidez mundial em empréstimo­s reciclados e indexados à Libor pelos famosos Eurobanks e seus petrodólar­es.

Hoje em dia, é difícil ou quase impossível acreditar em tal leniência com a inflação e “dependênci­a” política “de facto” do Fed com o Tesouro e o Executivo.

Além do mais, desde então, várias literatura­s e pensamento­s sobre a origem da inflação e a importânci­a da independên­cia de uma autoridade monetária no controle da inflação foram agraciados com Prêmios Nobel.

Os pensamento­s e as ações sobre política monetária e inflação mudaram. Felizmente, para melhor.

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