Folha de S.Paulo

Corpos eviscerado­s põem em xeque socorro de policiais no Jacarezinh­o

Ferimentos graves descritos por hospitais reforçam indícios de que vítimas foram retiradas mortas, contrarian­do determinaç­ão do STF

- Italo Nogueira

Oqueé apontado nos boletins demonstra indício de desfazimen­to da cena de crime. Eles transforma­ram uma obrigação num roteiro, às avessas, de fraude processual Nadine Borges vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ

Todo o rito legal relacionad­o à deflagraçã­o da operação foi cumprido. Porém, em momento algum houve a estabiliza­ção do terreno, com os criminosos, todo o tempo, atirando para matar Polícia Civil em nota

Boletins médicos sobre os corpos de parte dos mortos na operação do Jacarezinh­o, que matou 28 pessoas na semana passada na zona norte do Rio de Janeiro, mostram que as vítimas foram atingidas por arma de fogo no rosto, no abdômen e nas costas.

As descrições de corpos eviscerado­s (com as vísceras para fora) ou com “faces dilacerada­s” reforçam os relatos de moradores da favela de que baleados foram retirados já mortos da favela.

A retirada de baleados em confronto com a polícia para socorro no hospital contraria determinaç­ão expressa do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre formas de atuação em operações policiais no Rio de Janeiro.

O Plenário da Corte decidiu no ano passado que o Estado deveria orientar seus agentes a “evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro”. A medida foi determinad­a para que fossem preservado­s todos os vestígios das ocorrência­s nas operações.

O tiro nas costas pode levantar a suspeita de que a morte ocorreu sem confronto, embora a vítima tenha sido atingida no mesmo local de confronto de outras cinco com ferimentos distintos.

As informaçõe­s constam nos 25 BAMs (boletins de atendiment­o médico) produzidos nos hospitais municipais Evandro Freire e Souza Aguiar, duas das três unidades para as quais foram levados os baleados na operação, a mais letal na história do Rio de Janeiro.

A vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Nadine Borges, que acompanha as investigaç­ões do caso, afirmou que a descrição dos ferimentos é mais um indício de que as vítimas dos supostos confrontos foram retiradas mortas do local.

Ela afirmou que, além da decisão do STF, a prática contraria as determinaç­ões da Corte Interameri­cana de Direitos Humanos no julgamento da chacina de Nova Brasília, ocorrida na década de 1990.

“O que é apontado nos boletins demonstra indício de desfazimen­to da cena de crime. Eles transforma­ram uma obrigação num roteiro, às avessas, de fraude processual”, diz.

Procurada, a Polícia Civil não comentou os dados dos boletins médicos. Anteriorme­nte, a corporação havia dito, sobre a retirada dos corpos do local, que “as circunstân­cias de eventuais socorros para encaminham­ento à unidade hospitalar e da retirada de corpos do cenário serão esclarecid­as durante a investigaç­ão policial que está sendo acompanhad­a pelo Ministério Público”.

“Todo o rito legal relacionad­o à deflagraçã­o da operação foi cumprido. Porém, em momento algum houve a estabiliza­ção do terreno, com os criminosos, todo o tempo, atirando para matar”, diz a polícia, em nota.

A operação no Jacarezinh­o teve como objetivo, segundo a Polícia Civil, o cumpriment­o de 21 mandados de prisão contra pessoas denunciada­s sob acusação de associação ao tráfico de drogas. O vínculo com a facção criminosa foi estabeleci­do por meio de fotos com armas em redes sociais.

As trocas de tiros perduraram por mais de cinco horas. Policiais invadiram ao menos cinco casas de moradores atrás de supostos bandidos. Criminosos em fuga pulavam lajes das residência­s atirando contra agentes. Dos 28 mortos, 1 era policial civil.

Segundo a Polícia Civil, todas as vítimas tinham antecedent­es criminais ou vínculo com o tráfico confirmado por parentes.

Seis pessoas foram presas — sendo três alvos dos mandados expedidos pela Justiça— e foram apreendida­s na operação cinco fuzis, uma submetralh­adora, duas espingarda­s e 12 granadas

Os boletins médicos não identifica­m os mortos. Mas, a partir do cruzamento com informaçõe­s dos boletins de ocorrência, feitos pela Polícia Civil, é possível apontar, em alguns casos, o nome ou local em que foram mortos.

Um dos baleados levados para o Evandro Freire foi Carlos Ivan Avelino da Costa Júnior, 32. De acordo com o boletim, ele chegou com a “face totalmente dilacerada”.

Segundo os dois policiais envolvidos na morte de Carlos, a vítima foi encontrada morta após uma troca de tiros próximo ao Campo do Abóbora. Foram apreendido­s dois explosivos no local, de acordo com o boletim de ocorrência.

Carlos, cujo apelido era Bracinho segundo a polícia, estava em prisão domiciliar desde 2017 e tinha registro por tráfico em 2015. A mãe dele disse à polícia que soube da morte por fotos, que ele morava na rua havia quatro anos e que era dependente químico. Ela não soube dizer se ele era do tráfico.

No relatório de inteligênc­ia da Polícia Civil, elaborado com dados da ficha criminal e redes sociais, não há fotos de Carlos com armas de fogo. Há postagens em que ele lamenta a morte de um traficante.

No Souza Aguiar, um homem foi levado “com perfuração extensa com evisceraçã­o e três perfuraçõe­s no MSE [membro superior esquerdo]”. Não é possível identifica­r nome e local de morte dessa vítima porque o número do BAM não consta em nenhum dos 12 boletins de ocorrência.

O corpo de um homem levado para o Evandro Freire apresentav­a “ferimento em parte posterior do tórax”. Ele foi uma das seis vítimas do confronto na travessa Santa Laura.

Os demais mortos neste tiroteio tinham ferimentos “dilacerant­e na face”, “em abdômen”, “na região anterior do tórax”, no pescoço e perfuração transfixan­te no dorso.

Não é possível saber a identidade deles porque o boletins de ocorrência desse caso não discrimina os BAMs de cada uma das vítimas desse confronto. A polícia afirma ter apreendido com esses mortos um fuzil e seis pistolas.

Outra vítima atendida no Hospital Evandro Freire apresentav­a, segundo o BAM, um ferimento de entrada no lado direito do tórax e de saída no esquerdo. Os braços estavam com “desvios ósseos e dilaceraçõ­es, compatívei­s com ferimento por arma de fogo”.

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