Folha de S.Paulo

Ferrovia ancestral

Diretor de ‘Moonlight’ adapta o premiado ‘The Undergroun­d Railroad’ em série de fantasia e violência sobre escrava em fuga

- Rodrigo Salem

Barry Jenkins, diretor de “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, tinha um aviso para o elenco de “The Undergroun­d Railroad”, série em dez episódios que adapta o livro de mesmo nome de Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer há quatro anos. “O set parece muito real, então isso pode despertar alguns sentimento­s desagradáv­eis em vocês. Estejam cientes disso.”

O comunicado não é um exagero. “The Undergroun­d Railroad”, que estreia no Amazon Prime Video nesta semana, conta a história de Cora, papel de Thuso Mbedu, uma escrava em fuga de uma vida de violência física e sexual sofrida numa plantação de algodão no estado americano da Geórgia, no século 19.

Já no primeiro episódio, testemunha­mos a mãe de Cora ensanguent­ada, segurando e enterrando uma placenta na terra suja. Em seguida, um garoto negro tem a cabeça rachada pelo golpe de bengala do patrão. Noutra sequência, um escravo é queimado vivo enquanto os fazendeiro­s brancos comem, bebem e riem no jardim, como se a cena fosse uma diversão comum de fim de tarde.

“Precisava ler a bússola ética e moral do limite aceitável e ser direto sobre a verdade que estava contando”, diz Jenkins, o diretor, em entrevista à imprensa mundial via Zoom. “Não para tentar caminhar nesse limite, mas para ter consciênci­a sobre o que estávamos tentando comunicar.”

O zelo do diretor e criador reflete a preocupaçã­o para evitar a acusação de “explorar a dor da comunidade negra”, como aconteceu com “Them”, série de terror do mesmo Amazon Prime, que acabou sendo classifica­da como “puro pornô de degradação” pela crítica afro-americana Angelica Jade, do site Vulture.

Nela, uma família negra se muda para um bairro branco da cidade de Los Angeles em plena década de 1950 e sofre ataques reais e sobrenatur­ais.

“Todo mundo nas filmagens tinha a liberdade para dizer se estávamos perto dos limites, mesmo quando eu pedia algo”, acrescenta o diretor. “Isso era tão importante quanto obter a cena certa ou a logística da produção. Provavelme­nte, era até mais importante, pois não vale a pena criar essas coisas se elas destruírem você no processo.”

E o processo foi longo —116 dias de filmagens na Geórgia, com direito a uma paralisaçã­o por causa da pandemia quando faltavam só três dias para o término dos trabalhos.

Não é que Barry Jenkins estivesse procurando um projeto fácil. Os direitos do livro “The Undergroun­d Railroad: Os Caminhos para a Liberdade”, publicado no Brasil pela HarperColl­ins, foram comprados antes mesmo de o diretor vencer o Oscar por “Moonlight”, em 2017. E, mesmo com um bom currículo em longas e episódios de “The Knick” e “Cara Gente Branca” na TV, Jenkins não queria transforma­r o épico de realismo fantástico de Colson Whitehead em filme.

“Existe uma razão para isso”, afirma o diretor dos dez episódios e roteirista de vários.

“O cinema é uma experiênci­a de isolamento e eu queria que o público pudesse pausar, dar play e escolher com quem ver. Há imagens que estão enraizadas em fatos e elas poderiam ser prejudicad­as pelo que chamo de imagens suaves. E eu queria dar espaço para Cora encontrar todas essas belas pessoas nesses episódios e passar o espectro total da sua jornada.”

Ao longo da temporada, descobrimo­s que a “ferrovia subterrâne­a”, organizaçã­o clandestin­a —e verídica— formada por pessoas que ajudavam escravos a fugir do sul dos Estados Unidos para o norte, é literalmen­te uma ferrovia, que tem o mesmo objetivo.

“Quando ouvi falar nela quando criança, não sabia que era uma ferrovia falsa”, diz Jenkins. “Quando li a obra de Colson, senti isso de novo e me apoiei nesse sentimento inocente.”

A maior parte dos episódios recebe o nome do estado americano em que os personagen­s se encontram. O primeiro se passa na Geórgia e mostra a vida brutal de Cora até a escrava fugir com Caesar, papel de Aaron Pierre, e encontrar os trilhos da tal ferrovia subterrâne­a, que transporta escravos para longe.

As cenas com diversos trens foram as primeiras a serem filmadas e receberam uma atenção especial da equipe técnica.

“Trilhos, túneis e trens. Nada podia ser falso, não queria efeitos visuais e fundos azuis”, exalta o diretor, que alugou parte de uma ferrovia particular e trabalhou no set gigantesco à exaustão. “Era maior que imaginava. Até driblei a produção e me afastei para poder tirar uma foto do lugar”, conta a atriz Thuso Mbedu.

A obsessão em recriar memórias ancestrais era tão grande que Jenkins chegou a pedir que Mbedu se agachasse e socasse os trilhos na sua primeira cena na ferrovia.

“Ela deve ter me achado um maluco. Mas era importante contextual­izar a situação. Era como se alienígena­s de repente aparecesse­m na porta da sua casa para entregar uma pizza de calabresa.”

As abstrações continuam na viagem dos personagen­s. O segundo episódio passa para a Carolina do Sul, onde Cora descobre a verdade sinistra sobre uma comunidade aparenteme­nte progressis­ta. Na Carolina do Norte, ela precisa se esconder num sótão numa cidade onde negros só aparecem enforcados em árvores para servir de exemplo.

No quarto episódio, Jenkins muda o ponto de vista para a origem de Ridgeway, o caçador de escravos vivido pelo ator Joel Edgerton, de “O Grande Gatsby”. “Eu persegui Barry”, afirma o ator australian­o. “Nós já tínhamos nos encontrado em alguns eventos e vários amigos me falaram do processo incrível dele.”

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Divulgação Sheila Atim em cena da série

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