Folha de S.Paulo

Série documental reúne vítimas e expõe como acontece a escravidão no presente

- João Perassolo Escravidão Século XXI Brasil, 2018. Direção: Bruno Barreto e Marcelo Santiago. Terças, às 21h, na HBO

Decretada há 133 anos, a Lei Áurea determinou o fim da escravidão no Brasil. Ou talvez seja mais correto dizer que pôs fim só a um certo tipo de trabalho forçado.

“No século 19, o escravo era um bem, você vendia e comprava. Então você cuidava — você não vai vender um boi magro, um cavalo mancando. Hoje, não. Você não cuida do escravo, você explora e depois joga fora e pega outro”, diz o cineasta Bruno Barreto, ao esclarecer as peculiarid­ades de trabalhado­res mantidos em situações análogas à escravidão no Brasil de hoje.

Em parceria com Marcelo Santiago, ele passou quatro anos pesquisand­o histórias contemporâ­neas de pessoas que vivem para trabalhar, a exemplo de domésticas mantidas em cárcere privado, profission­ais do sexo e bolivianos que costuram roupa baratíssim­a para alimentar o lucro de marcas globais.

O resultado foi a série documental “Escravidão Século XXI”, já disponível na HBO. Em cinco episódios de cerca de uma hora cada um, o programa se debruça sobre dramas individuai­s, em várias regiões do país, para abordar uma questão meio invisível mas muito real, que só costuma vir à tona quando as autoridade­s recebem uma denúncia e estouram um cativeiro.

No primeiro episódio da série, por exemplo, acompanham­os a narrativa de Gabriela de Jesus, que foi entregue quando era criança, pelo pai, para uma mulher em Salvador, na casa da qual passou a trabalhar como doméstica.

Com objetivida­de e aparente resignação, Gabriela afirma que dormia cerca de três horas por noite, sendo acordada com banhos de água fria pela patroa, além de ter sido espancada e de ter sido jogada contra uma parede, ocasião na qual quebrou um dos braços e foi forçada a lavar calças jeans em seguida.

Presa por 15 anos na casa de sua algoz, uma professora, Gabriela não ganhava salário e só saía de casa para levar o lixo e comprar pão, sem falar com ninguém. Foi resgatada pelo Sindicato dos Trabalhado­res Domésticos da Bahia a partir de uma denúncia anônima, num caso que ganhou destaque na imprensa.

Uma das maiores dificuldad­es durante a produção da série foi conhecer essas histórias da boca de quem sofreu realmente com elas, afirma Santiago. “Chegamos a pensar que nós precisávam­os de um acompanham­ento psicológic­o. Se o espectador sente, imagina isso ao vivo, ali.”

Para dar contexto ao sofrimento dos retratados, a série se vale de depoimento­s de procurador­es, advogados, jornalista­s e pessoas envolvidas na luta contra a escravidão moderna, como o frade dominicano Xavier Plassat. Manter um escravo nos dias de hoje é instrument­alizar uma pessoa, “fazer do outro uma coisa para meu lucro pessoal e financeiro”, define ele.

A escravidão atual não é um “privilégio” do Brasil, irozina Barreto, lembrando o caso dos imigrantes africanos e árabes que vão para a Europa. Segundo ele, uma das principais causas do trabalho forçado em escala global é a concentraç­ão de renda.

“A revolução tecnológic­a está abolindo vários empregos —imagina agora, depois da pandemia, quantos empregos vão ser abolidos no setor de transporte­s, por exemplo?”, pergunta. “As condições nas quais você encontra emprego ficam cada vez mais sofríveis.”

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