Lives foram meu remédio e me salvaram na pandemia, escreve Mônica Salmaso
Desde que foi anunciado o primeiro caso de Covid no Brasil, entendi que estávamos por atravessar um momento com proporções de guerra, de grande deslocamento e de quebra do que seria o nosso “futuro presumido”, aquele com que contávamos.
Eu e minha família nos mudamos para o interior de São Paulo, com mais espaço e menos despesas. No nosso caso, dois músicos autônomos, a falta de trabalho foi imediata. Vivemos, sobretudo, de shows presenciais. Tínhamos uma agenda que foi suspensa, adiada ou cancelada.
Tínhamos uma reserva financeira, e nossa reação primeira foi a de tirarmos uma espécie de licença sabática. Ler livros, assistir a filmes, idealizar projetos. Li muito —não só em quantidade, mas em qualidade, recebendo a arte com toda a sua força e potência humanizadora, transformadora, acolhedora dos afetos e das angústias.
A duração da pandemia mudou nosso ânimo inicial. Momentos de profunda tristeza e raiva pela forma com que o Brasil enfrenta a calamidade e de falta de vontade de reagir se alternam com os de vontade de fazer algo que seja uma semente para o futuro, de acreditar nesse futuro, de fazer parte de um coletivo e ajudar os mais apertados.
Mas algo muito bonito e maior do que eu podia prever atravessou o ano comigo e me salvou muitas vezes, o “Ô de Casas”, que não nasceu exatamente como um projeto.
Por volta de 20 de março de 2020, eu assisti a uma live no Instagram do meu amigo Alfredo Del Penho. Alguém comentou que eu havia entrado, e ele me convidou para participar. Uma felicidade, já que o isolamento me impedia não só de ver amigos e parentes e de fazer o meu trabalho, mas de qualquer realização musical a não ser com o meu marido, Teco Cardoso, em casa.
Eu e Alfredo tentamos cantar uma música juntos, e o delay deixou claro ser impossível. A tentativa foi carinhosa e afetiva, mas deixou essa frustração. Convidei Alfredo para um vídeo. Cada um gravaria a sua parte, e o vídeo seria editado de forma que pareceríamos estar nos encontrando.
Era uma brincadeira, mas tinha a função de proporcionar uma visita, digamos, musical.
Assim, o primeiro vídeo do “Ô de Casas”, nome que me ocorreu de cara, foi postado em 22 de março. Não sei como isso aconteceu. Só sei que do dia seguinte até o 74º, foi feito e postado um vídeo diário.
O movimento que isso criou em mim, ao me encontrar com meus amigos e com pessoas maravilhosas, o retorno de bem-estar, de afeto e de agradecimento que passamos a receber, de ampliação de público de todos e de aprendizado de novas músicas, tornou a produção o meu remédio.
Como desdobramento, quatro bordadeiras do Sul abriram um convite coletivo para que cada um escolhesse um vídeo e fizesse um bordado.
Recebi o presente mais maravilhoso que já vi um artista receber —125 bordados de variados estilos. Troca de arte, de afeto. Estou desenhando um projeto para um livro e uma exposição com eles.
A pandemia ensina que somos um coletivo a quem não se nega a ver a realidade. Entendo que temos a obrigação moral, para dizer o mínimo, de sairmos dessa experiência modificados e conscientes.