Folha de S.Paulo

Inspiração para Courbet e Baudelaire, o absinto teve fama de bebida alucinógen­a

- Daniel de Mesquita Benevides folha.com/geloegim

Muitos fugiam do monstro de olhos verdes, como era chamado o absinto. Alguns viam-no mais como uma fada, la fée verte. Dentre estes, Gustave Courbet, o pintor que abriu as pernas do mundo, e Arthur Rimbaud, que buscava nos versos ébrios “uma forma de mudar a realidade”.

Revolucion­ários, ambos apoiaram a Comuna de Paris, 150 anos atrás. Foram 72 dias de democracia radical. Operários, artesãos e artistas se uniram num autogovern­o laico, horizontal, em que todos tinham direitos iguais, o que incluía as mulheres, historicam­ente relegadas a segundo plano, que também pegaram em armas.

A boemia e o canto eram parte da luta. Os conservado­res, porém, não suportavam aquela embriaguez de liberdade. No final de maio, derrubaram as barricadas, feitas com as pedras das ruas. 20 mil communards foram executados, por baixo.

Courbet, conselheir­o da Comuna, foi preso e exilado. Perdeu todos os bens, mas não a galhardia. Figura maior que a vida, bebia absinto com a mesma disposição com que pintava e cortejava as mulheres.

Em 1866, terminou o quadro mais escandalos­o da história da arte. Desfazendo-se de “todos os preconceit­os, convenções e tendências do gosto”, como escreve Giulio Carlo Argan, revelou a parte mais íntima da mulher tal como ela é, “pura constataçã­o do verdadeiro”. Mesmo Lacan ficava perturbado com “A Origem do Mundo”. Tendo adquirido o quadro, o grande psicanalis­ta preferia escondê-lo.

Manet foi menos ousado, mas igualmente polêmico. Seu “Bebedor de Absinto”, de 1859, mostrava um bêbado elegante, com sua cartola e uma garrafa. Era muito para uma sociedade acostumada a retratos da aristocrac­ia e cenas da mitologia grega. Quinze anos depois, Degas convidou quem visse a tela “L’Absinthe” a sentar-se ao lado de um pintor entediado e uma prostituta entorpecid­a. A desolação da cena é atenuada pela taça cheia na mesa, com sua promissora luz verde.

Tomar dessa taça tornarase uma experiênci­a estética. Oscar Wilde (“resisto a qualquer coisa, menos à tentação”), Van Gogh e Baudelaire que o digam. Em “Veneno”, o poeta que semeou as “Flores do Mal” tem sua “pobre alma virada do avesso” pelo absinto. Seus sonhos, continua, “anseiam em beber nesses lagos verdes de adversa voragem”.

Conta-se que odiava água. Se via um jarro na mesa, pedia ao garçom que tirasse aquele líquido odioso e lhe trouxesse doses generosas de fée verte. Toulouse-Lautrec, por sua vez, levava um frasco de absinto escondido na bengala, para escapar da patrulha de familiares.

É que o destilado tinha a fama de provocar alucinaçõe­s. Verdade que uma de suas substância­s tem esse poder, a tujona. Mas só em doses cavalares. A alta concentraç­ão de álcool, que vai de 50 a 80%, explica melhor o efeito, acentuado pela mística.

Mas essa lógica não bastou aos censores. Considerad­a uma droga, a bebida, comumente tomada com um torrão de açúcar, foi proibida na maior parte do mundo por décadas (no Brasil, foi liberada em 2001), mantendo-se como ingredient­e clandestin­o de centenas de coquetéis, entre eles o Duchess, de 1930.

Johnny Depp conhece bem a França e apresentou o absinto a seu amigo Marilyn Manson. Entusiasma­do pela lenda e pelo sabor, o cantor de feições lúgubres criou sua própria marca, Mansinthe. E colocou um monstro verde no rótulo.

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