Folha de S.Paulo

Em 1 mês de câmera ‘grava-tudo’, PM de SP tem menor letalidade em 8 anos

Número de mortes em confronto cai a zero nos batalhões com câmeras acopladas no uniforme

- Rogério Pagnan

são paulo No primeiro mês de ampliação do programa de câmeras portáteis da Polícia Militar, que registram intervençõ­es policiais em áudio e vídeo por meio de equipament­os acoplados ao uniforme, o estado de São Paulo atingiu o menor índice de letalidade policial em oito anos.

De acordo com dados inéditos obtidos pela Folha, caiu para 22 o número de mortes decorrente­s a intervençã­o policial no mês de junho, menor índice da PM desde maio de 2013, quando ocorreram 17 registros. A marca é também bem inferior à média de 50 óbitos dos primeiros cinco meses de 2021 —que já estava em queda.

Parte dessa redução se deve ao resultado obtido nos 18 batalhões integrante­s do programa Olho Vivo, que zeraram as mortes em confrontos. Nenhuma morte foi registrada nessas unidades. Quinze deles passaram a usar as câmeras no mês passado, incluindo os batalhões da Rota e Baeps (Batalhão de Ações Especiais de Polícia), com histórico de alto índice de letalidade —só a Rota tem 386 mortes acumuladas em confrontos desde 2016.

Também não houve, nesse período, nenhuma lesão corporal contra suspeitos provocada por disparos de arma de fogo. As seis que acontecera­m se deram por outros motivos, como luta corporal.

Os equipament­os utilizados nesses 15 batalhões adicionado­s agora ao programa possuem uma tecnologia inédita no mundo que grava o turno de serviço em sua totalidade, não sendo necessário o acionament­o manual por parte do PM.

Um dos problemas do sistema anterior, que se repete em várias instituiçõ­es policiais do mundo, ocorre quando o agente deixa de ligar o equipament­o em momentos cruciais e, assim, perde prova importante da ocorrência. No sistema atual não há mais perdas acidentais.

Por ser só o primeiro mês de ampliação do programa de câmeras e, também, por existir outras medidas de redução de letalidade em andamento na corporação (a exemplo do uso de armas menos letais, como as de choque), o comando da PM não atribui essa redução exclusivam­ente ao uso das câmeras no uniforme.

Até porque, por exemplo, não é a primeira vez que a Rota passa um mês sem um confronto letal, como aconteceu em novembro de 2018, quando esteve empregada no interior do estado para evitar o resgate de presos ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital). Por outro lado, em abril de 2019, o batalhão registrou 19 mortes em confrontos —11 delas na operação de Guararema contra uma quadrilha de furto em caixas eletrônico­s.

O reflexo das câmeras no policiamen­to está sendo estudado por um grupo de acadêmicos da USP (Universida­de de São Paulo) e da FGV (Fundação Getulio Vargas).

“É muito injusto dizer: ‘Olha, a polícia passou a usar câmera, diminuiu o uso da força, porque o policial é mau policial’. Não. Todos os policiais são maus policiais? Como ficaria se a gente analisasse esses 18 batalhões, com uma queda significat­iva de uso da força, e a gente pensasse que esses 6.000 policiais são maus profission­ais? Não é isso. As pessoas precisam entender esse fenômeno [de queda]”, diz o coronel Robson Cabanas Duque, gerente do programa Olho Vivo e um dos principais especialis­tas do país em câmeras corporais.

Ainda segundo o coronel da PM, que estuda o uso de câmeras pelas polícias do mundo desde 2010, as análises apontam que não é só o policial que muda seu comportame­nto nas abordagens quando sabe que está sendo filmado. A população também.

“As pessoas tendem a se comportar de uma maneira mais pacífica. O uso da força pela polícia só ocorre quando há uma desobediên­cia. O policial dá uma ordem, e a pessoa desobedece. Ele conversa, a pessoa desobedece, até um momento que ele precisa usar a força”, diz.

A mudança de comportame­nto, segundo Cabanas, não se refere apenas a policiais que comentem abusos, mas, também, a agentes que não seguem as normas internas e acabam se colocando em situação de confronto desnecessa­riamente, como na prisão de criminoso armado.

“Porque existem muitas coisas que o policial faz que não são criminosas, estão dentro das excludente­s de antijuridi­cidade, mas tecnicamen­te é inaceitáve­l.”

Até agora, de acordo com a PM, a tropa tem aceitado os equipament­os de maneira positiva. O único problema verificado foi o preenchime­nto impreciso de alguns dados nos arquivos de vídeo, mas nada que prejudique o programa, segundo a corporação.

Outra questão que será trabalhada com os agentes é a divulgação de falsas informaçõe­s acerca do sistema, como supostas falhas de segurança no armazename­nto de imagens (que são inviolávei­s) e que o programa também serviria para fiscalizaç­ão disciplina­r, como verificar uso do uniforme.

“O objetivo do sistema é proteger o policial, garantir a transparên­cia para a população, fazer com que o comportame­nto do policial se torne cada vez mais profission­al, respeitand­o as nossas normas, e fortalecer as provas judiciais”, diz o coronel.

Segundo a PM, até agora foram implantada­s 3.000 câmeras nessas 18 unidades. Há ainda uma licitação em andamento para a aquisição de outros 7.000 equipament­os, a serem usados por policiais da capital e Grande São Paulo até o começo do 2022.

“Para o mau policial, é um inferno na vida dele. Acabou. Essa pessoa vai pedir baixa [demissão]”, afirma Cabanas.

As câmeras custam R$ 1,2 milhão ao mês para o estado. O orçamento anual da PM de São Paulo gira em torno de R$ 16 bilhões. “É caro, se você falar em investimen­to em segurança pública. Mas, para mim, vale cada centavo. Eu acho que é um dinheiro que o povo de São Paulo está colocando em algo extremamen­te valioso para uma sociedade democrátic­a”, disse o PM.

Para o ouvidor da Polícia, Elizeu Soares Lopes, a implantaçã­o das câmeras corporais no serviço de policiamen­to só tem pontos positivos pois “possibilit­a dirimir qualquer controvérs­ia que eventualme­nte possa existir sobre alguma abordagem policial.”

“O bom policial, e a maioria é boa, não teme a câmera, pelo contrário. Isso é instrument­o importante. E a população fica protegida porque vai exigir que o policial tenha um comportame­nto condigno, conforme os padrões os protocolos da própria polícia”, afirma o ouvidor.

Ainda segundo Lopes, as câmeras também poderão registrar ataques injustos feitos contra os policiais por parte, inclusive, de autoridade­s que não respeitam o trabalho do PM.

“Lembra daquele caso dos guardas municipais de Santos que foram humilhados pelo desembarga­dor, hostilizad­os pelo desembarga­dor? Imagine se aquelas cenas não tivessem vindo à tona, será que aqueles guardas ainda estariam empregados?”, questiona.

Lopes se refere ao episódio envolvendo o desembarga­dor Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, que ao ser repreendid­o e multado por andar sem máscara, chamou o agente de fiscalizaç­ão de analfabeto, rasgou a multa e reclamou da punição ao secretário de Segurança da cidade, Sérgio Del Bel Júnior.

De acordo com a PM, o programa de câmeras é algo que não tem volta.

“É caro, mas, para mim, vale cada centavo. Eu acho que é um dinheiro que o povo de São Paulo está colocando em algo extremamen­te valioso para uma sociedade democrátic­a Robson Cabanas Duque coronel da PM e gerente do programa Olho Vivo

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Rubens Cavallari - 20.abr.21/Folhapress Sala do Copom (Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo), para onde as imagens das ocorrência­s são transmitid­as em tempo real
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