Folha de S.Paulo

COM DESOCUPAÇíO, CENTENAS VIVEM CLIMA DE TENSÃO NO RIO DE JANEIRO

Famílias reclamam de condições de escola onde estão depois de uma das maiores reintegraç­ões de posse do estado

- Júlia Barbon

Escola municipal de Itaguaí em que estão mais de 400 ‘refugiados da pandemia’ despejados há dez dias em uma das maiores reintegraç­ões de posse do estado; famílias reclamam das condições no abrigo e falam em incerteza para o futuro

itaguaí (rj) A bola começou a rolar e, em poucos segundos, crianças, mulheres e homens se juntaram. É a primeira vez em uma semana que o clima de descontraç­ão toma conta do Ciep 496, popularmen­te apelidado de Brizolão. Mas só por alguns minutos.

“Aqui a gente já acorda no susto. Esses dias dormi em pé”, afirma o desemprega­do Max Lima, 20. É na escola municipal de Itaguaí, vizinha ao Rio de Janeiro, que estão ficando mais de 400 pessoas despejadas há dez dias em uma das maiores reintegraç­ões de posse do estado.

Os relatos ali são de constante tensão, episódios de discrimina­ção nas ruas e incerteza sobre o que virá a seguir. O governo de Cláudio Castro (PSC) vive um impasse sobre o que fazer com os abrigados, muitos dos quais não têm os requisitos para entrar em políticas de habitação social, de acordo com o governo.

O terreno é da Petrobras e fica bem na entrada da cidade. Foi invadido e ocupado no Dia do Trabalho por um grupo que cresceu exponencia­lmente e hoje se identifica como Campo de Refugiados 1º de Maio, os “refugiados da pandemia”, coordenado­s pelo Movimento do Povo. Eram mais de 3.000 famílias, segundo a organizaçã­o.

Elas montaram uma comunidade inteira lá dentro, com ruas moldadas por barracos de lona, sistema de reciclagem, cisterna, refeitório­s, comércios, posto de saúde, escola, aulas de capoeira e muay thai para as crianças e banheiros químicos instalados pela própria petroleira.

Exatos dois meses depois, porém, uma decisão expedida pela juíza Bianca Paes Noto, da 2ª Vara Cível da região, e respaldada pelo ministro Humberto Martins, presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), determinou a desocupaçã­o do descampado em favor da estatal.

O que se seguiu foi uma reintegraç­ão violenta, segundo os moradores e imagens daquele dia. Diante da resistênci­a do grupo em sair, a Polícia Militar cercou o local e usou bombas de gás, spray de pimenta, balas de borracha e jatos de água para dispersão.

O ajudante de pedreiro Ramon Ribeiro, 23, exibe a cicatriz do projétil que atingiu seu nariz, rente ao olho esquerdo. Ele conta que estava sentado com outras pessoas atrás de pallets e de um sofá na entrada do terreno quando o Choque derrubou o portão e começou a atirar. Para ganhar tempo, atearam fogo no sofá, que se espalhou e lambeu parte dos barracos.

Com a perna enfaixada, Shirlen Cristóvão, 33, afirma que levou chutes ao resistir, sentada. Eles ainda dizem que um bebê levou um tiro de borracha na boca e uma idosa de mais de 90 anos infartou e morreu —os bombeiros, porém, não encontrara­m essas informaçõe­s, e a polícia não respondeu às perguntas da reportagem.

“Falaram que atiraram da cintura para baixo, mas se estávamos sentados não era para atirar. Estávamos num ato pacífico”, argumenta Ramon, se referindo à fala do comandante do Batalhão de Choque, tenente-coronel Vinícius Carvalho, que declarou na ocasião que a ação seguiu protocolos.

Foram dados 20 minutos para as famílias saírem, relatam, então muitas não conseguira­m levar pertences como fogão, colchão e armário. Os itens estão em um depósito na cidade de Belford Roxo até que sejam retirados pelos donos, informa a Petrobras, mas o boato na escola é de que estão num “lixão” que ninguém sabe onde fica.

Na correria, dezenas entraram em seis ônibus disponibil­izados pela empresa com destino a três rodoviária­s. O restante foi parar no colégio, onde a Folha foi impedida de entrar por funcionári­os da prefeitura na última quinta (8), quando sete viaturas da PM cercavam o local.

Ali, os moradores reclamam das condições do abrigo, onde quase ninguém usa máscara. Afirmam que são proibidos de sair após as 22h, que a comida fornecida pela petroleira já veio estragada, que a água é amarelada e racionada, e que a prefeitura não deixa que eles gerenciem as doações que recebem. Aos poucos, alguns vão deixando o colégio.

“Tem cerca de 25 famílias por sala, um em cima do outro, não tem nem como abrir a porta. Como eles só ligam a água de manhã, os banheiros estão todos entupidos. Lavamos as rampas, o pátio, tudo”, conta Ana Paula Jesuítas, 27, mostrando fotos de uma larva na salada.

Na quinta, eles fizeram um protesto e retiraram as pulseiras vermelhas que a prefeitura implantou para controlar o acesso. Na noite anterior, um homem havia sido agredido na rodoviária após ser identifica­do com o item. “Ninguém aqui é gado para ficar marcado”, dizia um enquanto elas queimavam numa pequena fogueira.

São frequentes os relatos de intimidaçã­o na cidade, conhecida por ser área de milícia. Renan Ribeiro, 22, e três amigos foram abordados por um homem num carro branco, que os colocou sentados na calçada, os filmou e “puxou os nomes” no celular. “Ele falou que viemos de longe para fazer bagunça. Entrei em desespero, nem saio mais à noite”, afirma.

Outro ponto de tensão foi a prisão de um dos coordenado­res do movimento, no dia da reintegraç­ão. O flagrante foi por “esbulho possessóri­o, desobediên­cia, parcelamen­to indevido de solo urbano e associação criminosa”. Eric Vermelho, 53, pagou fiança e saiu, mas alega que está sendo perseguido e por isso não está morando com os outros.

Voltou à escola para acompanhar o deputado estadual Waldeck Carneiro (PT) na quinta, mas saiu “escoltado” pelo grupo, correndo. “Percebi que aumentava o número de viaturas. Depois de uns minutos, chegou a Polícia Civil. Quando percebi que iniciaram um cerco e me olhavam sem parar, eu já estava sendo conduzido pelo povo para fugir do local”, relata.

O delegado que foi ao colégio filmou o rosto dos abrigados e, segundo eles, disse que todos seriam investigad­os. Um outro homem não identifica­do e armado também teria feito ameaças. Questionad­a, a corporação respondeu que uma equipe esteve no lugar “para cumprir diligência­s que fazem parte da apuração” contra Eric.

O governo do estado, a quem cabe o acolhiment­o, fez o cadastro voluntário de 431 pessoas, em sua grande maioria de outros municípios, e agora está identifica­ndo quem está apto a receber o auxílio emergencia­l estadual ou aluguel social.

Dados preliminar­es do levantamen­to, porém, indicam que “grande parte dos abritual gados não possui perfil elegível para as políticas de habitação social”: só um terço afirmou não possuir renda, 82% são solteiros e 46% dizem não ter família. “Um percencons­iderável” também já está no cadastro que dá direito ao Bolsa Família.

Segundo o Ministério Público, que participa de reuniões com os órgãos envolvidos, o estado “já sinalizou que não será possível concessão de aluguel social, pois alega que ainda há demanda não atendida da calamidade ocorrida na Região Serrana em 2010”.

A instituiçã­o ressalta que promotoras foram até a escola e “observaram famílias com intenção de deixar o local, porém com receio de represália­s de lideranças”. Afirma que “viabilizou o retorno ao lar” de três famílias que as procuraram.

A Prefeitura de Itaguaí diz que “o Ciep não foi construído para ser abrigo, então tem problemas estruturai­s”. Acrescenta que tem auxiliado na limpeza, que a água é incumbênci­a da Cedae, que os portões não são trancados e que as pulseiras são importante­s para controle.

Já a Petrobras declara que está disponibil­izando alimentaçã­o, colchonete­s e cobertores e que não foi informada de reclamaçõe­s sobre as refeições, que seguem critérios de qualidade e são acompanhad­as por equipes de fiscalizaç­ão. A empresa não respondeu qual era a utilidade do terreno e qual será o destino dele.

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Tércio Teixeira/Folhapress
 ?? Tércio Teixeira - 8.jul.21/Folhapress ?? Pessoas abrigadas em escola municipal de Itaguaí, na região metropolit­ana do Rio de Janeiro
Tércio Teixeira - 8.jul.21/Folhapress Pessoas abrigadas em escola municipal de Itaguaí, na região metropolit­ana do Rio de Janeiro

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