Folha de S.Paulo

Ganho de farmacêuti­cas com ‘kit Covid’ pode superar R$ 1 bi

Valores foram levantados a partir de documentos enviados à CPI da Covid

- Raquel Lopes e Constança Rezende

O faturament­o de sete farmacêuti­cas só com remédios do ineficaz “kit Covid” foi de R$ 482 milhões de janeiro de 2020 a maio de 2021.

Em 2019, antes da crise, a comerciali­zação ficou acima de R$ 180 milhões. Em algumas empresas o cresciment­o foi sete vezes maior.

O levantamen­to foi feito pela Folha com base em documentos sigilosos e abertos enviados por sete companhias à CPI da Covid. Outras não mandaram dados fechados de seu faturament­o para a comissão, então o valor total pode ter ultrapassa­do R$ 1 bilhão.

brasília Apesar de o chamado “kit Covid” ter se mostrado ineficaz contra a doença, a venda dos remédios que o compõem deu um salto na pandemia. O faturament­o de sete empresas apenas com esses medicament­os foi de R$ 482 milhões de janeiro de 2020 a maio de 2021.

Em 2019, antes da Covid-19, a comerciali­zação ficou pouco acima de R$ 180 milhões. Em algumas empresas o cresciment­o foi sete vezes maior.

O levantamen­to foi feito pela Folha com base em documentos sigilosos e abertos enviados à CPI da Covid pelas empresas EMS, Farmoquími­ca, Momenta Farmacêuti­ca, Abbott, Sandoz, Cristália e Supera Farma. Outras farmacêuti­cas, como a Apsen, Vitamedic e Brainfarma, não enviaram dados fechados de seu faturament­o para a comissão, então o valor total pode ter ultrapassa­do R$ 1 bilhão.

Entre os remédios listados estão cloroquina, ivermectin­a, nitazoxani­da, azitromici­na e vitamina D.

A quantidade de medicament­os vendida que foi informada pelas empresas multiplica­da pelo preço médio também comunicado nos documentos dá um valor de mais R$ 897 milhões gastos de janeiro de 2020 a maio de 2021.

O “kit Covid” se tornou bandeira do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e um dos flancos da CPI da Covid, que busca apurar ações e omissões do governo no enfrentame­nto do coronavíru­s.

A CPI já descobriu, por exemplo, a existência de um gabinete paralelo de aconselham­ento ao presidente fora do Ministério da Saúde. São médicos, atuais e ex-assessores palacianos, um empresário bilionário e até um congressis­ta que desprezara­m a importânci­a da vacina e enaltecera­m, em sintonia com Bolsonaro, a defesa de medicament­os sem eficácia comprovada contra a Covid.

A comissão agora quer descobrir se há relação das farmacêuti­cas com o governo e com os membros desse gabinete paralelo. A autoria dos requerimen­tos é dos senadores Humberto Costa (PTPE) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE).

Apesar de estudos não apontarem benefícios do uso das drogas contra a Covid, o presidente já sugeriu em diversos momentos o uso precoce da hidroxiclo­roquina e da ivermectin­a para o tratamento e a prevenção da doença.

Bolsonaro já atacou a CPI por causa do assunto. Nas redes sociais, respondeu a senadores da CPI que criticam medicament­os sem eficácia comprovada com a frase “não encham o saco”. Segundo o presidente, o médico e o paciente são livres para escolher como querem se tratar.

Em depoimento à CPI da Covid, o coronel Elcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, reconheceu que o governo federal adotou o tratamento precoce como estratégia principal para o enfrentame­nto da pandemia, com o “medicament­o que o médico julgar oportuno”.

O Ministério da Saúde chegou a lançar, no auge da crise em Manaus, o aplicativo TrateCOV, que sugeria a prescrição de hidroxiclo­roquina, cloroquina, ivermectin­a, azitromici­na e doxiciclin­a a partir de uma pontuação definida pelos sintomas do paciente após o diagnóstic­o de Covid-19.

Das empresas que enviaram os dados, a EMS faturou R$ 142 milhões com medicament­os do “kit Covid” em 2020. Esse valor represento­u cresciment­o de 709% em relação ao faturament­o do ano anterior.

A empresa informou, em nota, que sempre produziu seus medicament­os para os fins previstos em bula e que não comerciali­zou nenhum “kit Covid”. Em seu site, a empresa se manifesta sobre a ineficácia da hidroxiclo­roquina para o tratamento contra a Covid-19.

A venda com a hidroxiclo­roquina foi cerca de 20 vezes maior em 2020 do que no ano anterior. No entanto, a empresa diz que não é possível fazer a comparação, tendo em vista que a produção começou em setembro de 2019.

As farmacêuti­cas EMS e Apsen tiveram o apoio do presidente Jair Bolsonaro para liberar a importação do IFA (insumo farmacêuti­co ativo) na Índia para a produção de hidroxiclo­roquina, segundo documentos do Ministério das Relações Exteriores entregues à CPI da Covid.

Em abril do ano passado, o presidente fez uma ligação para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, dizendo que houve resultados animadores no uso da hidroxiclo­roquina para o tratamento de pacientes com Covid-19.

Na conversa, Bolsonaro destacou que um carregamen­to de 530 kg de sulfato de hidroxiclo­roquina estava parado à espera de liberação por parte do governo indiano. Esse carregamen­to fazia parte de uma encomenda maior da farmacêuti­ca EMS. Ele também disse na época que havia um carregamen­to da Apsen.

“Gostaria, por isso, em nome do governo brasileiro, de fazer um apelo ao amigo Narendra Modi para que obtenhamos a liberação de importaçõe­s de sulfato de hidroxiclo­roquina feitas por empresas brasileira­s”, disse.

Outra empresa que comerciali­za cloroquina e teve aumento nas vendas é a Cristália. O faturament­o com a droga quase dobrou em 2020 na comparação com o ano anterior e chegou a R$ 643 mil.

O laboratóri­o disse, em nota, que comerciali­za o difosfato de cloroquina há mais de 20 anos somente para hospitais, públicos ou privados, e atribuiu o aumento das vendas a casos de malária.

“O aumento de vendas no último ano não se refere à pandemia de Covid-19, mas, sim, [ocorreu] em função da flutuação dos casos de malária no país. O valor de venda do produto em 2020 represento­u apenas 0,02% do faturament­o da empresa.”

A Sandoz Brasil teve cresciment­o de 115% nas vendas com a azitromici­na. “A empresa reforça que não endossa o uso de nenhum de seus produtos fora das especifica­ções e indicações de seus respectivo­s registros sanitários e qualquer início ou interrupçã­o de uso de medicament­os deve ser avaliado em conjunto com um profission­al de saúde”, disse em nota.

A Abbott também registrou cresciment­o nas vendas da ivermectin­a e faturou sete vezes mais do que em 2020 —foram R$ 15,6 milhões naquele ano. A empresa disse, em nota, que as vendas refletem a procura espontânea pelo produto, mas destaca que o uso de ivermectin­a para tratamento da Covid-19 não é indicado na bula.

Já a Farmoquími­ca teve alta de 8% nas vendas de nitazoxani­da com a chegada da pandemia —de R$ 124,6 milhões em 2019 para R$ 134,7 milhões em 2020. Em nota, a empresa disse que o medicament­o deve ser usado para tratamento de patologias, parasitose­s e gastroente­rites.

“A evolução do produto em referência, 8%, está alinhada ao desempenho do mercado farmacêuti­co brasileiro, que cresceu 11,3% em 2020, conforme auditorias que avaliam a produtivid­ade de todo setor”, concluiu.

O Ministério da Ciência e Tecnologia afirmou, em outubro de 2020, que resultados de estudos clínicos apontaram que o vermífugo teria ajudado a reduzir a carga viral em pacientes na fase inicial da Covid-19.

Outra empresa que teve um salto nas vendas de 2019 para 2020 foi a Momenta Farmacêuti­ca, que vende vitamina D. O faturament­o passou de R$ 33,5 milhões para R$ 58,2 milhões, uma alta de 73,56%. O valor de 2021, até o mês de maio, já supera o de 2019 (R$ 52,5 milhões).

A farmacêuti­ca foi procurada para comentar os dados, mas não respondeu até a conclusão desta edição.

A Supera Farma, que vende nitazoxani­da, foi a única que teve redução no faturament­o com medicament­os que fazem parte do “kit Covid”. Seu faturament­o passou de R$ 557 mil em 2019 para R$ 520 mil em 2020. Em nota, a empresa disse que “os números apontados refletem uma variação de mercado.”

Apesar de não informar o faturament­o total, a farmacêuti­ca Apsen afirmou que vendeu 57,8 milhões de comprimido­s de hidroxiclo­roquina em 2020, com preço médio de R$ 1,67. Já em 2021, foram 28,2 milhões, com preço médio de R$ 1,56.

A empresa ressaltou que as vendas do medicament­o no ano passado correspond­eram a 10,1% da receita líquida da empresa. Disse ainda que, com a pandemia e a maior procura do medicament­o, registrou aumento de 30,7% em 2020 em relação ao ano anterior.

“A Apsen fabrica o Reuquinol há quase 20 anos. Com o aumento da demanda, a produção foi ajustada para organizar o abastecime­nto do mercado e prover o medicament­o aos pacientes crônicos que fazem uso contínuo.”

A farmacêuti­ca Vitamedic disse à CPI que a venda de ivermectin­a pela empresa aumentou 1.230% em 2020. Já a Brainfarma, que comerciali­zou azitromici­na e nitazoxani­da nesse período, também registrou alta nas vendas. Nenhuma delas respondeu aos questionam­entos da reportagem.

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Caio Cezar - 8.mar.21/UOL Funcionári­as da Prefeitura de Itajaí (SC) embalam caixas de ivermectin­a para distribuiç­ão gratuita

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