Folha de S.Paulo

Cuba mira youtubers e EUA depois de protestos

Díaz-Canel volta a apontar embargo como raiz dos problemas; governo corta internet em todo o país

- Sylvia Colombo

Líder cubano, Miguel Díaz-Canel disse ontem que os protestos do dia anterior, os maiores em décadas, foram realizados por delinquent­es que manipulam emoções pelas redes e que a razão da escassez de comida e remédios é o bloqueio dos EUA. A internet no país foi cortada para evitar atos.

buenos aires O líder do regime cubano, Miguel Díaz-Canel, disse, em pronunciam­ento na manhã desta segunda (12), que os protestos ocorridos no dia anterior, os maiores em décadas na ilha, foram realizados por “delinquent­es” que “manipulam as emoções da população por meio das redes sociais”.

Em misto de reunião com a cúpula do regime, pronunciam­ento e entrevista coletiva, Díaz-Canel afirmou que a razão pela qual há escassez de alimentos e remédios na ilha é o bloqueio comercial imposto há 60 anos pelos EUA, o que demonstra, de certa forma, que o dirigente reconhece a existência de uma crise no país.

O líder cubano também disparou contra os manifestan­tes, a quem chamou de vulgares e indecentes, afirmando que eles tiveram, “assim como na Venezuela, a resposta que mereciam”.

No dia anterior, quando fez seu primeiro pronunciam­ento à nação, convocou apoiadores a saírem às ruas para enfrentar o que chamou de provocaçõe­s, declaração que foi vista por parte da comunidade internacio­nal como ameaça.

José Miguel Vivanco, diretor da ONG Human Rights Watch para as Américas, afirmou que “muitos estão cansados dos abusos do regime e perderam o medo”. O presidente americano,JoeBiden,tambémsema­nifestou, dizendo em um comunicado que “os EUA pedem ao regime cubano que, em vez de enriquecer­em, escute o povo e atenda às suas necessidad­es”.

Na reação aos ativistas que saíram às ruas de toda a ilha para protestar, algo que não se via há muitos anos, DíazCanel mostrou ainda imagens de saques a lojas e questionou: “Se falta comida, por que roubam geladeiras e TVs?”.

Rogelio Polanco, chefe do departamen­to ideológico do Comitê Central, foi na mesma toada e classifico­u o movimento de“muitoperig­oso”porqueusa um “novo espaço público: as redes sociais”. Para ele, as plataforma­s “dão voz a pessoas mal informadas e mal intenciona­das, que podem realizar uma guerra não convencion­al”.

Por isso, nesta segunda, o regime da ilha cortou a internet em quase 50 pontos do país, segundo monitorame­nto do NetBlocks, organizaçã­o que monitora a internet livre pelo mundo, e plataforma­s como WhatsApp, Facebook, Instagram e Telegram passaram a funcionar com instabilid­ade —quando funcionava­m.

A irritação da cúpula do regime com os usuários de redes sociais ficou expressa numa fala de Díaz-Canel, segundo a qual as pessoas que escutam “esses youtubers” estão apoiando uma mudança que “trará um sistema que não tem preocupaçã­o com o bem-estar da população”.

Em locais onde a internet é controlada, como Cuba ou China, é comum que estrangeir­os e usuários locais utilizem VPNs, ferramenta que simula que o acesso à internet por outra parte do mundo, o que permite burlar o bloqueio.

Fora da internet, segundo o Movimento San Isidro, de oposição, 71 pessoas foram presas no domingo, 12 das quais foram liberadas. Já o grupo Cubalex, baseado nos EUA e com colaborado­res na ilha, foram cem os detidos. Uma delas foi Camila Acosta, correspond­ente do jornal espanhol ABC, de acordo com a própria publicação. Ela teria sido intercepta­da ao sair de casa para realizar um trâmite pessoal.

A Sociedade Interameri­cana de Imprensa (SIP), órgão segundo o qual há mais casos de profission­ais “agredidos e presos” durante a cobertura dos protestos, condenou a detenção de Acosta e os ataques a jornalista­s.

Por trás dos esforços para reprimir os protestos esconde-se uma situação econômica grave, intensific­ada pela pandemia de coronavíru­s.

No ano passado, o país viu o PIB encolher 11%. E a ilha, que importa mais de 70% do que consome, tem sofrido com a escassez de alimentos e remédios devido ao fechamento das fronteiras provocado pela crise sanitária. Postagens em redes sociais mostram o quão comuns são as filas para comprar os itens.

A falta de comida é tão grande que o regime cubano impôs condições para permitir que camponeses matem vacas ou bois para consumo próprio. No pedido ao Estado pelo direito de matar o animal, é preciso declarar quanto leite a vaca já produziu e quantos quilos tem o boi.

A carência de voos internacio­nais também interrompe­u as remessas em dólares que cubanos radicados no exterior, principalm­ente nos EUA, enviam para as suas famílias. Segundo dados oficiais, 65% delas recebiam ajuda de parentes. Há, também, o agravament­o da situação sanitária devido à pandemia de e à falta de estrutura hospitalar para atender toda a população.

Ainda que Cuba tenha medicina de ponta e esteja fabricando vacinas, o sistema hospitalar da ilha não tem dado conta de atender tantos casos, e as manifestaç­ões ocorreram um dia após o regime ter negado um pedido de dissidente­s para que se criasse um “corredor humanitári­o”, viabilizan­do a chegada de remédios.

O governo recusou a solicitaçã­o. Por meio de um comunicado, o Ministério das Relações Exteriores reconheceu a gravidade da situação sanitária, mas afirmou que está fazendo uma campanha e recebendo apoios do exterior. Em uma postagem nas redes sociais, o chanceler Bruno Rodríguez afirmou que “Cuba recebeu doações de insumos médicos de 20 países, e outras 12 estão em processo de envio”.

A ilha vive há anos um apagão de informação, pois não há imprensa independen­te, e quem pede liberdade de expressão o faz sob censura e perseguiçã­o. Os artistas têm sido protagonis­tas dessa demanda.

Nos atos de domingo, os manifestan­tes entoavam “já não gritamos mais ‘pátria ou morte’ [slogan da revolução de 1959], mas ‘pátria e vida’”, trecho de canção lançada em fevereiro e que tem servido de motor para os protestos.

Mas apenas uma canção não levaria multidões às ruas se a situação em Cuba não fosse tão grave. Além das remessas de dólares do exterior, Cuba também perdeu, devido à pandemia, o turismo, uma de suas principais fontes de entrada da moeda americana. Essa indústria é responsáve­l por 10% do PIB da ilha —incluindo atividades correlatas, como a gastronomi­a.

Assim, a depender da repressão, o país parece reunir diversos sinais que indicam a continuida­de dos protestos.

 ?? Yamil Lage - 11.jul.21/AFP ?? Manifestan­te contrário ao regime liderado por Miguel Díaz-Canel é detido por policiais durante protesto em Havana
Yamil Lage - 11.jul.21/AFP Manifestan­te contrário ao regime liderado por Miguel Díaz-Canel é detido por policiais durante protesto em Havana

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