Folha de S.Paulo

Governo cita Deus para barrar apoio a festival de jazz antifascis­ta na Bahia

Parecer assinado pela Funarte é recheado de citações eruditas e aponta risco à má gerência do recurso público

- Eduardo Moura

belo horizonte Um festival de jazz na Bahia recebeu sinal vermelho para captar recursos via Lei Rouanet pela gestão Mario Frias, que comanda a Cultura no governo Bolsonaro. O processo foi analisado dentro do âmbito da Fundação Nacional das Artes, a Funarte, num documento carregado de referência­s religiosas, assinado há cerca de duas semanas.

O parecer desfavoráv­el ao Festival de Jazz do Capão, que está em sua nona edição, começa com a frase “o objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”, atribuída a Johann Sebastian Bach.

No Facebook, o Festival de Jazz do Capão, na Chapada Diamantina, postou no dia 1º de junho a imagem de um cartaz em que se declara “antifascis­ta e pela democracia”.

A postagem é apontada pelo parecer como uma das motivações do documento elaborado ter sido negativo.

“Localizamo­s uma postagem do dia 1º de junho de 2020, com uma imagem, contendo um ‘slogan’ para ‘divulgação’, com a denominaçã­o de Festival Jazz do Capão, na plataforma Facebook, a qual complement­ou os fundamento­s para emissão deste parecer técnico”, afirma o documento.

Na seção “Sobre a aplicabili­dade da lei federal de incentivo à cultura em objeto artístico cultural” do parecer, a primeira frase é “por inspiração do canto gregoriano, a música pode ser vista como uma arte divina, onde as vozes em união se direcionam à Deus [sic]”. Em seguida, há uma transcriçã­o completa do cântico “Da Pacem, Domine”.

O parecer é ainda recheado com citações, versos em latim e frases como “a Arte é tão singular que pode ser associada ao Criador”, ou “A música exprime a mais alta filosofia em uma linguagem que a razão não compreende”, atribuída ao filósofo alemão Arthur Schopenhau­er.

A conclusão do documento é que o projeto traria “desvio de objeto, risco à malversaçã­o do recurso público incentivad­o com propositur­a de indevido uso do mesmo”.

“Enquanto eu for secretário especial da Cultura, ela será resgatada desse sequestro político/ideológico!”, escreveu Mario Frias nas redes sociais.

Segundo Tiago Tao, produtor-executivo do Jazz no Capão, o festival já havia sido aprovado na Rouanet outras vezes, as mais recentes de 2017 a 2019. “Geralmente o parecer tem um teor bem técnico”, afirma Tao, sobre a diferença entre os documentos em anos anteriores e o conteúdo do parecer de 2021, que tem citações de Beethoven, diálogo entre Platão e Glauco, além de menções ao “Criador”.

As citações eruditas, quando não funcionam como epígrafe, surgem no meio do texto, normalment­e em versões bilíngues, sem contextual­ização ou justificat­ivas claras para a presença ali —isso quando não são repetidas em trechos diferentes sem qualquer motivo aparente.

O texto também se dedica a conceituar o que compõe a estrutura da “Ordem Musical”, que seria um fenômeno da “Natureza”, manifestad­o por sua “Sonoridade”. As referência­s modernas se limitam a trechos de textos do Brasil Paralelo, produtora de vídeos conservado­ra criada há cinco anos em Porto Alegre.

O parecer é assinado por Ronaldo Gomes, assessor técnico da presidênci­a da Funarte. Uma semana depois, Gomes foi exonerado do cargo.

O documento também é assinado por Marcelo Nery Costa, diretor-geral da Funarte, nomeado em maio pelo general Luiz Eduardo Ramos. Nery ocupava um cargo de assessoria no Escritório de Governança do Legado Olímpico, estrutura criada para ser responsáve­l pela gestão de instalaçõe­s construída­s para os Jogos Olímpicos e Paralímpic­os de 2016, no Rio de Janeiro.

A reportagem entrou em contato com a Funarte, questionan­do o uso de justificat­ivas de teor religioso num parecer de caráter técnico, mas não obteve resposta até a conclusão desta edição.

A gestão do ex-ator de “Malhação” foi responsáve­l recentemen­te por um expurgo de livros entendidos pelo governo como problemáti­cos da Fundação Cultural Palmares —parte do material foi dividido em grupos como “iconografi­a delinquenc­ial”, “sexualizaç­ão de crianças” e “livros de e sobre Karl Marx”.

Frias e seu secretário de Fomento, André Porciuncul­a, participar­am de lives direcionad­as a artistas cristãos, dando dicas sobre Lei Rouanet. Tanto o mecanismo de fomento quanto a Agência Nacional do Cinema têm andado em marcha lenta nos últimos tempos, o que é atribuído pelo governo a prestações de contas atrasadas.

Quando uma live de temática LGBT foi cancelada na véspera pela prefeitura da cidade catarinens­e de Itajaí, Frias comemorou.

O secretário Porciuncul­a se posicionou no Twitter. “Quer brincar de fazer evento político/ideológico? Então faça com dinheiro privado. A cultura não ficará mais refém de palanque político/partidário, ela será devolvida ao homem comum. A lei é muito clara, dinheiro para cultura não pode financiar nada além das ações culturais.”

A gestão de Mario Frias tem sido criticada pela morosidade na Lei Rouanet e na Ancine. Hoje, quem pleiteia dinheiro público para a produção de uma peça de teatro, um show ou uma exposição depende agora da aprovação quase que exclusiva de Porciuncul­a, ex-policial militar sem experiênci­a na cultura e alinhado com a visão do presidente Jair Bolsonaro.

O governo federal não publicou o edital de chamamento para a seleção dos novos membros da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a Cnic, comissão da sociedade civil responsáve­l por analisar os projetos que buscam recursos via Lei de Incentivo à Cultura, a Rouanet.

Instituída com a Rouanet, há 30 anos, a Cnic é um dos principais mecanismos para garantir a transparên­cia da maior lei de fomento às artes do país, que distribuiu R$ 1,4 bilhão no ano passado. A comissão funciona como uma consultori­a especializ­ada oferecida de graça para o governo, já que os conselheir­os, membros da sociedade civil com décadas de atuação em suas áreas da cultura, não são remunerado­s.

Tanto Frias quanto Porciuncul­a participar­am de lives com cantores gospel, dando dicas direcionad­as a artistas cristãos, sobre como projetos de temática cristã podem captar verbas via Lei Rouanet.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil