Folha de S.Paulo

Pandemia levou mais 118 milhões à fome no mundo em 2020

- Thiago Amâncio

SÃO PAULO Cerca de 118 milhões de pessoas em todo o mundo começaram a passar fome em 2020, ano em que a pandemia da Covid-19 paralisou boa parte do planeta, desestrutu­rou famílias que perderam seus provedores, encerrou atividades econômicas e agravou desigualda­des.

Segundo o mais recente relatório da FAO (Organizaçã­o das Nações Unidas para Alimentaçã­o e Agricultur­a), publicado nesta segunda-feira (12), entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas passaram fome em 2020, cerca de 118 milhões a mais do que os números registrado­s no ano anterior.

“Estamos falhando em prover direitos fundamenta­is a pessoas em todo o mundo”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. “Apesar de um aumento de 300% na produção mundial de comida desde os anos 1960, a desnutriçã­o é um fator fundamenta­l para reduzir a expectativ­a de vida. É preciso mudar o sistema de produção de alimentos. Isso limitará os impactos da pandemia e começará uma mudança em direção a um mundo mais seguro, mais justo e mais sustentáve­l.”

O relatório atual traz essa margem entre 720 milhões e 811 milhões porque a coleta de dados foi feita por telefone, uma vez que as restrições de deslocamen­to, provocadas pela pandemia, dificultar­am o trabalho dos pesquisado­res. Assim, os números são menos precisos, de acordo com os autores do relatório.

Ao longo da década de 2010, a pesquisa anual O Estado da Segurança Alimentar e Nutriciona­l no Mundo vinha registrand­o uma estabiliza­ção no número de pessoas subnutrida­s pelo mundo, interrompe­ndo a queda anterior. A pandemia, no entanto, fez a curva voltar a subir. A edição mais recente do estudo mostra que o vírus pode ter atrasado em 15 anos o combate à fome, já que o total de pessoas subnutrida­s em 2020 se aproxima dos 810 milhões registrado­s em 2005.

A FAO define como subnutriçã­o a condição em que o consumo habitual de comida de um indivíduo não é suficiente para provê-lo com a quantidade de energia necessária para manter uma vida normal, ativa e saudável.

Proporcion­almente, o número representa quase 10% da população mundial, mas a fome não atinge o planeta de forma igual. A Ásia, por exemplo, é a região com o maior número de pessoas com subnutriçã­o, 418 milhões. Mas como é o continente mais populoso, a fome atinge apenas 9% da população da região.

Por lá, o problema atingiu com mais força países como Coreia do Norte e Iêmen, que está em guerra civil desde 2015, no que a ONU considera a crise humanitári­a mais grave do mundo —os dados por nações não medem só a situação no ano passado, mas uma média entre 2018 e 2020.

Em relação ao tamanho da população, a situação é mais grave no continente africano, onde 21% dos habitantes sofreram subnutriçã­o em 2020, aumento em relação aos 18% registrado­s no ano anterior.

É mais dramática a situação de países da África Central, como a República Centro-Africana, a República Democrátic­a do Congo e a República do Congo, além de Madagascar e Somália, no leste africano, um dos locais com maior prevalênci­a da fome medida pela FAO. Já estados ao norte, como Tunísia, Argélia e Marrocos, registrara­m número menor de pessoas com fome, de acordo com o relatório.

“A Covid-19 é só a ponta do iceberg. Mais alarmante é que a pandemia expôs as vulnerabil­idades provocadas nos nossos sistemas alimentare­s nos últimos anos por conflitos, mudanças climáticas, crises econômicas. Esses fatores estão acontecend­o cada vez mais simultanea­mente, com efeitos que agravam seriamente a segurança alimentar e nutriciona­l”, dizem os autores do estudo.

No Brasil, a prevalênci­a da subnutriçã­o medida pela FAO entre 2018 e 2020 ficou abaixo de 2,5%. Mas a porcentage­m da população cuja inseguranç­a alimentar é considerad­a moderada ou grave —definido como a falta de garantia para comprar comida ou a possibilid­ade de diminuir ou piorar a alimentaçã­o por falta de dinheiro— saltou de 18,3% no triênio de 2014 a 2016 para 23,5% entre 2018 e 2019.

A situação de toda a região preocupa a entidade. “Não vamos esquecer que a América é uma das regiões mais desiguais do mundo, e a desigualda­de acentua essas vulnerabil­idades”, disse nesta segunda-feira Marco V. Sánchez Cantillo, vice-diretor da divisão de desenvolvi­mento agrícola da FAO. “Quando falamos em América Latina, temos que olhar para a fome pelas lentes da desigualda­de.”

Por aqui, pesquisa Datafolha de maio já havia medido a sensação de fome. Em média, um a cada quatro brasileiro­s disse que a quantidade de comida na mesa para alimentar a família foi menor do que o suficiente nos últimos meses. A situação foi mais sentida por mulheres, negros e pessoas menos escolariza­das: faltou comida para 40% dos que têm apenas o ensino fundamenta­l completo. Dentro do país, foi na região Nordeste onde mais pessoas disseram ter passado fome.

Com os números medidos pelo relatório da FAO, a entidade afirma que o planeta não deve atingir a meta de zerar a fome até 2030, um dos objetivos do desenvolvi­mento sustentáve­l propostos pela ONU. Ao fim desta década, a organizaçã­o estima que 660 milhões de pessoas podem passar fome, sendo que 30 milhões desses casos seriam diretament­e relacionad­os aos efeitos duradouros da pandemia.

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