Folha de S.Paulo

O silêncio do Ministério da Saúde sobre as vacinas vencidas é ensurdeced­or

- Mauricio Lacerda Nogueira médico, doutor em virologia, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia

Cerca de uma semana atrás, reportagem da Folha afirmou que cerca de 26 mil doses de vacinas anti-Covid produzidas pela AstraZenec­a foram administra­das na população de diversos municípios do país após a sua data de vencimento. A matéria teve grande repercussã­o na mídia e nas redes sociais, mas é o silêncio enorme do Programa Nacional de Imunização (o famoso PNI) que nos causa mais espanto.

O PNI faz parte do SUS, o nosso Sistema Único de Saúde. O SUS é, por definição, um sistema tripartite, em que União, estados e municípios dividem tarefas e obrigações de forma hierarquiz­ada e regulament­ada, de modo que o acesso dos cidadãos ocorra de maneira equânime e com qualidade.

O SUS foi pioneiro na vacinação em larga escala no mundo, sendo considerad­o referência para campanhas de erradicaçã­o de doenças (como a pólio). Também tem grande capacidade de responder com agilidade às demandas nacionais, como no caso da pandemia de H1N1, quando cerca de 80 milhões de brasileiro­s foram vacinados em aproximada­mente três meses.

Nesse sistema tripartite, cabe ao PNI comprar insumos necessário­s à vacinação e distribuí-los aos estados, além de (e principalm­ente) regular, normatizar e dar as diretrizes das campanhas. Aos estados cabe o sistema de logística de distribuiç­ão, e aos municípios, a operaciona­lização da imunização, levando a tão esperada vacina aos cidadãos no seu ponto final, seja este uma UBS no rico interior paulista ou nas remotas aldeias ribeirinha­s do alto rio Negro.

A notícia de que 26 mil doses teriam sido administra­das de forma equivocada (fora da validade) trouxe uma série de questionam­entos a toda essa rede, cujo ponto final são os municípios. São eles, afinal, os responsáve­is pela administra­ção das doses e pelos processos burocrátic­os envolvidos (como registro de doses, de lotes etc.).

Diversos municípios respondera­m de forma transparen­te à questão suscitada pela reportagem, apresentan­do dados claros que apontavam erro de registro. Alguns, contudo, recusaram-se ares ponderou chamaram de“fakenews ”( excelente desculpa atual para ignorar fatos desagradáv­eis). Cidades como Nilópolis (RJ) agiram rapidament­e ao perceber o equívoco e seguiram para a correção dos danos. Outras que negaram no primeiro momento depois assumiram o erro e passaram a corrigira questão.

A utilização de doses vencidas não oferece um risco individual significat­ivo. Em geral, os prazos de validade são muito conservado­res. Não é como um botão mágico que diz que a vacina funciona hoje e deixa de ter efeito amanhã. Assim, assumindo que o erro foi de poucos dias, as pessoas que tomaram a vacina vencida provavelme­nte estão imunizadas.

Mas houve uma quebra de protocolo, e isso não é aceitável. Os protocolos são claros. Vacinas são dadas no prazo de validade. Caso ocorra erro, as pessoas envolvidas devem ser imunizadas novamente.

O silêncio do PNI (e do Ministério da Saúde, consequent­emente) é ensurdeced­or. Caberia a ele tomar uma atitude rápida com o diagnóstic­o do problema, a adoção de medidas de correção e a prestação de contas para a população, com o máximo de transparên­cia.

O mundo de hoje vive uma crise de comunicaçã­o de proporções históricas. O fato deixa de ser importante, e as versões são a narrativa final. O movimento antivacina é organizado e financiado de forma global. Qualquer erro pode e será utilizado por esse movimento para manchar e destruir os programas de vacinação, numa agenda para lá de ignorante e anticientí­fica.

Por isso repito: cabe ao PNI e aos agentes de saúde pública de todos os níveis o pronto esclarecim­ento dos fatos, a tomada de atitudes corretivas e total transparên­cia do acontecido.

Essa pandemia já ceifou mais de 500 mil vidas no país. Mostrou ainda nosso despreparo em saúde pública, com laboratóri­os de referência sucateados, hospitais mal preparados e nosso sistema de gestão vulnerável a interesses escusos.

Por outro lado, mostrou o papel importante da ciência no país, a resposta rápida das universida­des e institutos de pesquisa públicos e privados em rapidament­e apresentar soluções na forma de vacinas e diagnóstic­o.

Mas a maior vítima não pode ser o PNI. O Brasil precisa de um PNI forte e com credibilid­ade para salvar milhões de vidas, não só hoje diante da Covid, mas no futuro com o sarampo, a febre amarela, a rubéola e tantas outras doenças que afetam nosso país e que podem ser prevenidas por imunização.

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