Folha de S.Paulo

Amor virtual ou presencial?

Diante de tanto descalabro, convém pensar o amor

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Eles já se relacionav­am pela internet há algum tempo e a conversa estava ficando cada vez mais animada. Eis que chega o dia de se encontrare­m pessoalmen­te, com os dois devidament­e vacinados e testados. Hora de colocar o guarda-roupa abaixo, depois de mais de um ano sendo liberais na comida e negacionis­tas no exercício físico e descobrir que não há roupa bacana que ainda sirva. As peças íntimas são pré-pandêmicas e as roupas novas, compradas pela internet, não passam de pijamas sociais.

Fica a dúvida: eles dobram a aposta e arriscam se encontrar ou permanecem no filtro da virtualida­de?

O abismo entre a imagem que ansiamos ter —plana e retocada— e a dura realidade de nossa forma, textura, cheiro, som e sabor é a causa do frisson do primeiro encontro, mas, também, o motivo de o evitarmos.

Um exemplo radical e comovente dessa vacilação foi relatado por Vicky Schaubert, repórter da rádio e televisão norueguesa NRK. Ela conta a história de Mats Steen, que nasceu em Oslo e foi diagnostic­ado com distrofia muscular de Duchenne, que leva à atrofia muscular e expectativ­a de vida em torno de 20 anos. A questão é que, quando Mats morreu, aos 25, a família descobriu que as intermináv­eis horas que o jovem dedicava a jogos interativo­s permitiram que ele criasse belas amizades e tivesse 3 “casamentos” —um por 5 anos. Seu enterro foi acompanhad­o por pessoas que vieram de outros países, inconsoláv­eis com a perda do amigo, o qual nunca souberam doente. Vale ouvir os relatos dessas pessoas, antes de arriscar entrar no mérito da validade dessas relações.

Temos também a aposta na direção inversa à de Mats. Com esclerose lateral amiotrófic­a (ELA), Stephen Hawking impôs-se ao público com sua genialidad­e, casando-se duas vezes. Mas não precisa ser gênio para que os “fora de padrão” esperado exijam seu devido lugar ao sol. O documentár­io espanhol “Yes, We Fuck!” (2015), dos diretores Antonio Centeno e Raúl de la Morena, dá voz a sujeitos cujos corpos são considerad­os fora do jogo amoroso e sexual. Fica claro que preconceit­o é algo que precisa ser encarado tanto por quem se arvora “normal”, quanto por quem é tido como deficiente.

O mundo pós-internet não criou a capitulaçã­o diante do encontro amoroso, mas permitiu que ela alcançasse formas estratosfé­ricas.

Lembremos da peça “Cyrano de Bergerac”, que se passa no século 17, cujas versões se multiplica­ram desde seu lançamento em 1897. Diante do medo de ser rejeitado pela bela Roxana, Cyrano, cuja feiura foi cantada em verso por Edmond Rostand, prefere emprestar sua poesia ao belo Cristiano, furtando-se ao encontro com a amada. Perde a chance de viver o amor que Roxana revelou-se capaz de lhe oferecer, quando a farsa é escancarad­a.

Nossa dificuldad­e em abrirmos mão da imagem ideal nos faz preferir a distância segura da virtualida­de a arriscar as decepções inerentes ao encontro. Os jovens são os mais atingidos por essa hesitação, porque vivem bruscas mudanças físicas, inseguranç­a sexual e busca por aprovação social.

Relacionam­entos amorosos são feitos de silêncios, constrangi­mentos e mal entendidos, não há como erradicar o desencontr­o humano. Acreditamo­s ser capazes de saber o que em nós capturaria a aprovação e o amor alheio, mas Freud já demonstrou que o que nos enlaça ou afasta do outro é de caráter inconscien­te, fora do nosso controle.

É disso que buscamos, em vão, fugir, deixando Roxanas inconsoláv­eis pelo caminho.

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