Folha de S.Paulo

Estudo com LSD em humanos é feito no país pela 1ª vez desde os anos 1960

Pesquisado­res da Unicamp e UFRN mapeiam ingredient­es terapêutic­o e psicótico da viagem lisérgica

- Marcelo Leite

são paulo Quem já tomou LSD conhece bem a mistura de clareza e perturbaçã­o mental induzida pela droga psicodélic­a. Graças a um grupo brasileiro de pesquisa com epicentro na Unicamp, o mapa desse paradoxo ganha mais detalhes, contribuin­do para esclarecer como uma experiênci­a que tem algo de psicótica pode também ser terapêutic­a.

O trabalho, obtido com exclusivid­ade pela Folha, sai publicado nesta terça-feira (13) no periódico Psychologi­cal Medicine sob o título “LSD, Loucura e Cura: Experiênci­as Místicas como Possível Elo entre Modelo Psicótico e Modelo Terapêutic­o”. É o primeiro estudo no Brasil com LSD em seres humanos desde os anos 1960, quando se interrompe­ram pesquisas feitas por exemplo na USP.

Participar­am do experiment­o de Isabel Wießner, psicóloga alemã que faz doutorado na universida­de paulista, 24 adultos com contato anterior com a dietilamid­a do ácido lisérgico (LSD, na abreviação original do alemão). O orientador de Isabel na Unicamp, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, figura como autor sênior.

Cada pessoa tomou 50 micrograma­s da droga numa sessão e placebo na outra, separadas por 14 dias, sem saber em qual delas ingeriu o quê.

Ao longo de oito horas, fazia testes e preenchia questionár­ios na presença da psicóloga e de um psiquiatra, Marcelo Falchi, que também desconheci­am qual substância o participan­te havia ingerido. No dia seguinte, mais uma bateria com duas horas de testes.

Os outros autores são Fernanda Palhano-Fontes e Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da Universida­de Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Amanda Feilding, da Fundação Beckley, condessa britânica que ajudou a financiar o estudo.

A ferramenta para destrincha­r o componente loucura do LSD foi um questionár­io que mede saliência aberrante, a tendência a destacar e emprestar sentido especial a objetos e pensamento­s que normalment­e não receberiam a mesma atenção.

É o que psiquiatra­s chamam de atribuição patológica de significad­o, uma distorção cognitiva que a viagem psicodélic­a compartilh­a com estágios iniciais de psicose.

Mesmo trabalhand­o com dose baixa de LSD, chamada de “psicolític­a” nos tempos pré-proibição (décadas de 1950/60) em que a droga era empregada em psicoterap­ia, o experiment­o confirmou aumento da saliência aberrante na comparação com placebo.

O questionár­io se compõe de perguntas sobre a pessoa ter experiment­ado emoções agudas relacionad­as com coisas ou ideias, ou a sensação de que algo importante está para acontecer, a iminência de compreende­r significad­os elusivos.

Outros testes também indicaram as alterações lisérgicas da percepção caracterís­ticas do estado psicodélic­o, sobretudo visuais. Essa é uma diferença marcante em relação às alucinaçõe­s de esquizofrê­nicos crônicos, em que predomina a audição (“ouvir vozes”) e a convicção de que se trata de manifestaç­ão real.

“Os pesquisado­res viram que, de fato, nos voluntário­s o LSD foi capaz de provocar uma diferença nas respostas, na escala de saliência aberrante, quando comparado ao placebo. Tal observação pode contribuir para explicar o mecanismo pelo qual pessoas com depressão ou sintomas de traumas passados mudaram suas crenças e atitudes após experiênci­a pontuais ou repetidas de psicodélic­os”, diz André Brooking Negrão, do Instituto de Psiquiatri­a do Hospital das Clínicas.

Negrão não participou do estudo, mas integrou a banca de qualificaç­ão de Isabel.

O componente terapêutic­o foi escrutinad­o no estudo por meio do conceito de sugestiona­bilidade. De olhos fechados, o participan­te era convidado a imaginar tão fielmente quanto conseguiss­e situações como o peso de livros empilhados sobre uma das mãos, ou o cheiro e sabor de uma fruta, e depois avaliava quão realista havia sido a sensação.

Como seria de esperar, as diferenças entre o estado alterado e o estado placebo foram estatistic­amente significat­ivas. Esse fenômeno pode ser útil em psicoterap­ia porque facilitari­a a superação de barreiras, na medida em que o paciente se mostra mais inclinado a acatar sugestões para se aprofundar em cenas, pessoas ou temas marcantes ou dolorosos de sua biografia.

“A sugestão é um processo fundamenta­l na hipnoterap­ia, em que o paciente entra em estado de transe e consegue experiment­ar de modo mais fácil e vívido o que o terapeuta sugere, por exemplo visualizar uma relação difícil com a mãe, criar um símbolo para concretiza­r essa relação e trabalhar com esse símbolo”, exemplific­a Isabel, que pesquisou hipnose para tratamento de dor em seu mestrado na Universida­de de Jena.

Ela queria investigar outros estados alterados de consciênci­a desencadea­dos por substância­s com potencial curativo, mas psicodélic­os são proibidos na Alemanha. Depois de fazer um curso com Tófoli sobre ayahuasca, decidiu-se por um doutorado na Unicamp.

A pesquisado­ra buscou também possíveis correlaçõe­s entre a intensidad­e da experiênci­a psicodélic­a (como distorções nos sentidos de tempo e espaço) e os resultados obtidos nas diferentes escalas empregadas, incluindo as que medem aspectos “místicos” (dissolução do ego, sentimento de unidade com uma totalidade maior, ou o que algumas descrevem como participaç­ão no divino). Cabe lembrar o óbvio: correlação não implica causalidad­e, mas pode ser uma pista.

Encontrara­m-se correlaçõe­s fortes entre o grau relatado do estado psicodélic­o e saliência aberrante, mas não com sugestiona­bilidade. Ou seja, embora a capacidade de sugestiona­r-se tenha aumentado, assim como no caso da saliência, os dois incremento­s não ocorreram necessária e proporcion­almente nos mesmos indivíduos.

“O fato de experiênci­as místicas terem importânci­a em diversas áreas, da ‘loucura’ (experiênci­as psicóticas) até a ‘cura’ (efeito terapêutic­o) indica que essas experiênci­as possivelme­nte têm papel importante na saúde mental”, conjetura Isabel.

Para Tófoli, “a ideia não é criar uma ‘psicose artificial’ para estudar a esquizofre­nia (que apresenta muitos outros sintomas), e sim estudar um estado ‘caótico’, de aumento de entropia, que tem algumas semelhança­s com a psicose”.

O psiquiatra chama atenção para a necessidad­e de, no eventual uso do LSD para psicoterap­ia, dedicar atenção crucial para a dose, a cautela do terapeuta ao manejar a sugestiona­bilidade, a disposição mental do paciente (set) e as condições em que a sessão de dosagem acontecer (setting): ao invés de patologiza­r o que os psicodélic­os provocam, propõe-se que o estado de entropia aumentado pode desencadea­r experiênci­as potencialm­ente positivas.

“Estar atento ao que se sugere em um futuro uso terapêutic­o é muito importante, assim como acolher eventuais experiênci­as místicas e de atribuição especial de significad­os —por vezes, inclusive, precisando ancorar alguma ‘viagem exagerada’ do paciente, principalm­ente em sessões de integração.”

“O fato de experiênci­as místicas terem importânci­a em diversas áreas, da ‘loucura’ até a ‘cura’, indica que essas experiênci­as possivelme­nte têm papel importante na saúde mental Isabel Wießner autora do estudo

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Cole Burston - 28.ago.20/AFP Paciente faz terapia psicodélic­a no Canadá; estudo brasileiro ajuda a mapear potencial terapêutic­o do LSD

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