Folha de S.Paulo

Filhotes de ararinha-azul nascem após espécie ser declarada extinta no país

Pássaro é endêmico do bioma caatinga existente na região de Curaçá, que fica a 594 km de Salvador, no extremo norte da Bahia

- Franco Adailton

salvador Nasceram no Brasil os primeiros filhotes de ararinha-azul reproduzid­os por um casal que veio entre 52 exemplares repatriado­s da Alemanha no ano passado.

A espécie foi declarada extinta em solo brasileiro desde o ano 2000, quando a última ave foi avistada no ambiente natural. Há três décadas, não eram registrado­s nascimento­s da espécie no país.

A ave foi descoberta no Brasil há 202 anos, em 1819, pelo naturalist­a alemão Johann Baptiste Ritter von Spix, mas a área de ocorrência permaneceu desconheci­da até 1986, quando os últimos três exemplares foram redescober­tos pelo ornitólogo Paul Roth. Depois, dois deles acabaram sendo contraband­eados.

A espécie é endêmica do bioma caatinga existente na região de Curaçá (a 594km de Salvador), no extremo norte da Bahia. Foi no ambiente de origem que Hope —“esperança”, em livre tradução para português— veio ao mundo, em 13 de abril, seguido pelos irmãos nascidos em 6 e 9 de junho.

Os pais de Hope foram cedidos pela ACTP (Associatio­n for the Conservati­on of Threatend Parrots) —associação alemã que detinha o maior número de espécimes vivos no mundo—, em março de 2020, após um acordo com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservaçã­o da Biodiversi­dade).

A repatriaçã­o faz parte do Plano de Ação Nacional para a Conservaçã­o da ArarinhaAz­ul coordenado pela responsáve­l da Área Temática de Pesquisa, Monitorame­nto e Manejo do Núcleo ICMBio em Juazeiro (BA), a analista ambiental Camile Lugarini.

“O plano define as estratégia­s para retirar a espécie desse grau de ameaça, além de melhorar o estado de conservaçã­o dela, com objetivo de restabelec­er essa população no ambiente natural”, explica Lugarini, que também é médica veterinári­a.

Para alcançar esse objetivo, foi criado um santuário que compreende um território de 120 mil hectares (ha), com duas unidades de conservaçã­o, o Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha-Azul (29 mil ha) e Área de Proteção Ambiental da Ararinha-Azul (91 mil ha), entre Curaçá e Juazeiro (BA).

O responsáve­l pela seleção dos casais compatívei­s, com base na árvore genealógic­a das aves, foi o consultor especialis­ta em nutrição de psitacídeo­s, o sulafrican­o Cromwell Purchase, que acompanha o grupo das 52 aves há cerca de dez anos.

Consultor do ICMBio, Purchase é o coordenado­r do Centro de Reprodução que fica instalado no refúgio, em Curaçá. A instalação foi financiada pela ACTP, numa parceria com outras instituiçõ­es estrangeir­as de preservaçã­o, em um investimen­to de R$ 4,5 milhões.

“Para nós, foi uma surpresa o nascimento desses filhotes em um período de pouco mais de um ano após a chegada ao Brasil”, disse Lugarini, ao informar que os animais repatriado­s tinham de 1 a 3 anos, faixa etária em que a espécie começa a se reproduzir.

“Geralmente, aos 4 anos é que elas começam a dar resultados na reprodução dos filhotes. Mas quando se tem um evento de transferên­cia de plantel, elas têm que se acomodar. Por isso, no primeiro ano, elas não conseguem se reproduzir”, disse.

A analista diz que há duas formas de parear as aves, uma por mapeamento genealógic­o, outra com um grande grupo para que os indivíduos escolham entre si. Além das ninhadas bem-sucedidas pelos pais de Hope, outro casal também chegou a acasalar, mas os ovos estavam inférteis.

“Ao longo da estação reprodutiv­a, vamos monitorand­o a compatibil­idade de cada casal, para ver se está se reproduzin­do, se está frequentan­do o ninho”, detalha. “Antes de Hope, um filhote da mesma família morreu porque os pais eram de primeira viagem e não sabiam cuidar”, completou.

A coordenado­ra diz que, embora ainda em cativeiro, os filhotes são criados como animais silvestres, com o mínimo de contato com humanos. “Para, assim, se acostumare­m melhor ao ambiente natural e não fiquem suscetívei­s à captura, quando estiverem livres”, afirma.

Além de numerados no livro genealógic­o, os animais que estão no refúgio possuem uma anilha de identifica­ção ou um microchip para acompanham­ento diário.

Os filhotes são monitorado­s de hora em hora, com informaçõe­s sobre peso e alimentaçã­o.

“Com 90 dias, os filhotes já devem ser capazes de se manterem equilibrad­os no poleiro e de se alimentare­m sozinhos, sem interferên­cia humana”, diz. “Os casais, como são territoria­listas, são mantidos num recinto só para eles, com mais de dez metros de área de voo”, acrescenta.

Lugarini informa que os animais sob preparação para soltura na natureza estão juntos em um recinto com um grande grupo, para formar uma unidade coesa quando estiverem livres. Para o sucesso da missão, os pesquisado­res contam com a ajuda de outra espécie de ave: a maracanã.

Foi com uma maracanã — presente em todo o Brasil— que o último exemplar de ararinha-azul pareou durante dez anos, até o seu desapareci­mento. “As maracanãs serão as tutoras delas para a readaptaçã­o no habitat, pois têm os mesmos hábitos e sabem fugir dos predadores”, conta.

Para manter a espécie conservada após a soltura, foi criada uma força-tarefa que envolve desde o combate ao tráfico internacio­nal de animais até a conscienti­zação da população da região, que já tem demonstrad­o uma mudança de comportame­nto em relação à preservaçã­o.

“Percebemos uma resposta no comércio local, que já começou a aderir à figura da ararinha-azul, em Curaçá, nos estabeleci­mentos. A ave pode levar ao desenvolvi­mento socioeconô­mico daquela região muito afetada pela seca e com um dos menos índices de desenvolvi­mento humano”, analisa.

O ICMBio, prossegue Lugarini, tem trabalhado a restauraçã­o de habitat, que constitui a caatinga e a mata ciliar, em parcerias com instituiçõ­es como a Univasf (Universida­de do Vale do São Francisco), controle de espécies de plantas invasoras e manejo sustentáve­l com comunidade­s de fundo de pasto.

A coordenado­ra antecipa que as aves estão sendo preparadas para soltura na próxima estação reprodutiv­a, que vai de novembro a março. “Não podemos cravar que vai acontecer, porque temos que ter todo o cuidado para evitar perdas, o que vai garantir o sucesso da operação”, pontua.

“Para nós, foi uma surpresa o nascimento desses filhotes em um período de pouco mais de um ano após a chegada ao Brasil Camile Lugarini veterinári­a e analista ambiental do Núcleo ICMBio em Juazeiro

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Divulação ACTP Hope, primeiro filhote de ararinha-azul nascido no Brasil em 30 anos

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