Folha de S.Paulo

Instinto maternal

Poderia ser só mais uma aula do curso para gestantes ministrado pela doula

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos

Poderia ser apenas mais uma aula do curso para gestantes ministrado pela doula, psicanalis­ta, pedagoga, influencia­dora digital e mãe de trigêmeos mais badalada do ramo.

“E hoje temos uma aluna nova. Se apresenta para as mamães pra gente te conhecer melhor.”

“Oi, eu sou a Gláucia, estou de 25 semanas e, sendo bem sincera, resisti bastante a fazer essa aula porque acredito que toda mulher tem instinto materno, é um lance biológico. Mas minha sogra fez chantagem emocional, pagou a matrícula, então estou aqui de coração aberto.”

“Essa questão do instinto materno é realmente controvers­a, ninguém nasce sabendo como cuidar de um bebê. Bom, vamos começar pegando nossos filhinhos, risos.”

As alunas pegam suas bonecas e ficam a postos —com exceção de Gláucia, que interage efusivamen­te com a sua, afetando a voz.

“Cadê o neném? Cadê?

Achou!”

“Gláucia, presta atenção aqui.”

“Nossa, ela fica tranquila no colo, pelo visto vai com qualquer um. Despachada, né?” “Normal. É uma boneca.” “Era isso que eu ia falar. Tão linda, parece mesmo uma bonequinha. Olha esse narizinho. Eu vou pegar esse nariz… Eu vou pegar!”

“Não foi isso que eu quis dizer. É uma boneca. Um bebê reborn.”

“Na minha época chamava criança índigo, criança cristal, acabei me perdendo na nomenclatu­ra... Tão quietinha, será que é fome? Deixa eu dar um mamá pra ela. Ih, não tá pegando. Estranho. Ué, não era só encostar o bebê no mamilo?” “É uma boneca, Gláucia.” “Mas essa professora é coruja mesmo. E ela não é só bonita, não. É esperta também. Olha fixo pras coisas. Focadíssim­a.”

“Pessoal, deixa eu só tirar a dúvida da Gláucia antes de a gente seguir com a aula. Gláucia, querida, isso que você está segurando é um bebê de brinquedo, um objeto inanimado, uma boneca. Eu posso fazer o diabo com a minha, tá vendo? Virar de cabeça para baixo, sacudir, bater a moleira no chão. Engraçado que ela não reage. Por quê? Porque é a porra de uma boneca. Como você não consegue perceber a diferença? Se fosse um bebê tava cheia de espuma por dentro? Acho que não!”

A professora destroça a boneca, chocando todas as presentes, especialme­nte Gláucia.

“Agora eu entendi o que você quis dizer. Nem toda mulher tem instinto materno. Você é a prova disso.”

| dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Bia Braune | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Simão

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Silvis

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