Folha de S.Paulo

Afinidades eletivas

Sou de uma geração que trocou Paris por Londres —mas torci pela Itália na Eurocopa

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa |

Um saudoso amigo brasileiro, que por acaso foi diretor desta Folha, gostava de dizer que eu era um português que sentia pena por não ter nascido inglês.

Sempre ri da observação e sempre tentei convencê-lo de que estava errado. Domingo passado, por exemplo, na final da Eurocopa, torci pelos italianos contra os ingleses.

É uma traição à minha anglofilia, diria ele, até porque devo muito àquela tribo do norte.

É fato: quando penso na infância, ela é inseparáve­l das histórias de Sherlock Holmes, que consumi em várias edições. Aos oito ou nove anos, também me imaginava, fumando cachimbo e tocando violino, enquanto deslindava um caso misterioso com princesas da Morávia.

Verdade que, nesses verdes anos, também passeava pelo Mississipp­i com Huckleberr­y Finn e Tom Sawyer. Mas, à noite, recolhia a Baker Street.

A adolescênc­ia continuou por aquelas terras. A geração dos meus pais tinha em Paris a sua Meca e os existencia­listas como os profetas de ocasião: havia o grupo de Sartre e o grupo de Camus. E os mais sábios optavam por Raymond Aron.

De resto, a música era francesa, o cinema era francês. Alguns, para fugir à pauta, introduzia­m qualquer coisa de italiano —os livros de Alberto Moravia, o cinema de Dino Risi, hoje esquecidos— mas o cotidiano era na rive gauche, mesmo que estivessem em Lisboa ou no Porto. Talvez usassem boina e fumassem Gitanes.

A minha geração, nascida depois da revolução do 25 de abril de 1974, trocou Paris por Londres. Alguns também passaram a viver em Nova York sem jamais saírem da Europa. Foi o adeus à nouvelle vague, foi o encontro com a new wave de Scorsese, Coppola ou Bogdanovic­h.

E, no meu caso, foi o jornalismo inglês, vertido nas crônicas de Jeffrey Bernard e Auberon Waugh, os dois gigantes da segunda metade do século 20 que me arrastaram para a má vida dos jornais (na primeira metade do século 20, houve H. L. Mencken, claro).

Os nossos pais liam o Le Figaro ou o Libération. Nós optávamos pela Spectator, deplorando o francesism­o deles e cometendo o mesmo pecado. A única diferença é que a boina tinha sido trocada por um blazer tweed.

Mas eis que a experiênci­a se intromete pelo caminho. Por mim falo. Vivi algumas temporadas na Inglaterra. Politicame­nte falando, os nativos são admiráveis: como dizia o historiado­r Élie Halevy (um francês, por sinal), eles conseguira­m fazer todas as revoluções importante­s da era moderna —a social, a industrial, a política, a moral— sem nunca recorrerem à Revolução (com maiúscula). Há algo a aprender com esta tradição, sobretudo quando a Europa continenta­l foi um açougue no século 20.

Mas nessas temporadas inglesas havia saudades, a mais portuguesa das palavras. Saudades da língua, que para mim não é mero instrument­o utilitário, mas uma forma de oxigênio vital.

À noite, depois de um dia inteiro a navegar por palavras tomadas de empréstimo, sentia falta da minha música e então tocava umas páginas de Eça ou de Machado, lidas à sorte, só para adormecer em paz.

E sentia falta do sol, e da comida, e do céu de Lisboa, embora o pudesse trocar pelo céu de Roma, ou de Barcelona, ou de Atenas, ou até do Rio —o sol do Sul, o sol de Zeus e de Júpiter, e não das divindades nórdicas.

E também sentia falta do mar, e dos frutos do mar, e do vinho, e das conversas regadas com vinho, e com tempo, muito tempo, todo o tempo. Sentia falta da preguiça e da vagabundag­em, como um personagem de Albert Cossery que prefere nada ter para nada fazer.

Assim me vi no domingo, na final da Eurocopa. De um lado, os guerreiros ingleses, saídos do pub e da neblina.

Do outro, os rapazes da “passeggiat­a”, do sol mediterrân­ico e da opera buffa, até na onomástica —o irrequieto Immobile, o profano Chiesa, o distinto Insigne. Só faltou mesmo o goleiro Gollini, que o técnico italiano deixou em casa, embora um Donnarumma (que nome!) também meta respeito.

Mas é olhando para os rostos deles que os identifico sem esforço: poderiam ser os rapazes com quem cresci na minha rua. Como trocar esses “fratelli” por uma boa biblioteca?

Um saudoso amigo brasileiro gostava de dizer que eu era um português que sentia pena por não ter nascido inglês.

Sempre ri da observação e tentei convencê-lo de que estava errado. Eu sou apenas um português que sente pena por não ser um melhor português.

| seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho qua. Marcelo Coelho | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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Angelo Abu

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