Folha de S.Paulo

Legislação gera entraves e dificulta a vida de produtores de queijo artesanal

Atuando sem selo regulador, paulista Lano-Alto teve centenas de produtos destruídos por fiscais

- Ana Mosquera

são paulo “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo homem. [...] De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein”. Das palavras de Niemeyer veio a inspiração para a identidade visual da Lano-Alto, fazenda experiment­al localizada em São Luiz do Paraitinga, a 173 Km de São Paulo.

“Chegamos à conclusão de que na natureza também não tem curva perfeita. Mesmo o sol e a lua, se você for aproximand­o, vai ver que são imperfeito­s em seus contornos”, compara o proprietár­io Peéle Lemos, que, junto com a companheir­a Yentl Dalanhesi, mudou-se há sete anos para onde agora produz alimentos, propõe vivências e divulga conteúdo sobre a vida no campo.

No quarta-feira (1°), após uma denúncia anônima, eles tiveram 120 kg de queijo, 45 litros de iogurte e 9 kg de requeijão apreendido­s e destruídos por fiscais da regional da Defesa Agropecuár­ia do Estado, devido à falta do selo que permite a produção de alimentos de origem animal para comerciali­zação no município.

Desde que começou a produção de laticínios para venda, há cerca de dois anos, Peéle está à frente da empreitada para conseguir o selo do Serviço de Inspeção Municipal (SIM) —ainda ausente na cidade que tem base na economia agrícola, e é conhecida pela pecuária e pelo turismo rural.

“Desde sempre a gente tentou se regulariza­r de acordo com nosso tamanho”, comenta. O problema, ao que tudo indica, é que a legislação brasileira possui entraves que dificultam a regulariza­ção dos pequenos, bem como não considera aspectos culturais relacionad­os ao fazer artesanal.

Enquanto em âmbito nacional, a lei que regulament­a o Serviço de Inspeção Federal (SIF) remonta à década de 1950 e foi pensada para contemplar exportador­es, na esfera estadual o último texto que prevê o Registro de Estabeleci­mento Sob Forma Artesanal pelo Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISP) data de 20 anos e não traz grandes conquistas para a categoria.

“Eu tenho que seguir métricas batidas do que são receitas de queijo. Não aceitam leite cru, cura em madeira e vários processos que, pra gente, são inegociáve­is. A gente quer trabalhar com a história do lugar em que vive e o SISP Artesanal não permite que isso aconteça”, conta Lemos.

Segundo o diretor técnico do Centro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (CIPOA), ligado à Defesa Agropecuár­ia, Bruno Bergamo Ruffolo, prevalece a questão da saúde pública. “Nós temos que balancear as necessidad­es deles com os requisitos mínimos para que tenhamos um alimento saudável.”

Para o advogado especialis­ta em regulação de alimentos Marco Aurélio Braga, entretanto, a fiscalizaç­ão não leva em conta a sanidade do alimento, resumindo-se a reunir papéis que atestem a regularida­de da pequena produção.

“A legislação faz com que a gente olhe para a produção artesanal querendo que ela se industrial­ize. Essa exigência de controle de processo e o nível agressivo com o qual a fiscalizaç­ão atua faz com que as pessoas fiquem na clandestin­idade”, diz.

Segundo a porta-voz do GT Queijos Artesanais de Leite Cru do Slow Food Brasil, Katia Karam, essa perspectiv­a punitiva tem origem na lei de 1950 e no Riispoa (Regulament­o da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal), ainda muito presente nas universida­des.

“É com essa perspectiv­a higienista que nossos médicos (veterinári­os) e técnicos que estão nos órgãos públicos são formados até hoje”, argumenta.

Uma das principais polêmicas que rondam as leis dos queijos artesanais diz respeito ao leite cru, ainda que estudos científico­s comprovem que a maturação elimina ou reduz a proliferaç­ão de microrgani­smos.

“A pasteuriza­ção é um processo recente, tem 150 anos, e a humanidade consome queijos de leite cru há dois mil”, fala Katia, lembrando que o produtor detém o conhecimen­to para monitorar esse processo.

“Esses controles são artísticos. É você observar o clima, a vaca. Tem que entender desde o capim até a maturação. Fazer queijo artesanal e atender à legislação é humanament­e impossível”, conta um queijeiro da Canastra (MG), que preferiu não ter seu nome divulgado, sobre a rotina de quem produz alimento e mantém vivo o saber-fazer milenar.

“Aos poucos, a cultura brasileira vai sendo esmagada, abrindo espaço para a ‘pasteuriza­ção’, para coisas que não contam a nossa história”, avalia a chef Roberta Sudbrack, que viveu situação semelhante no Rock In Rio de 2017 e se juntou à grande corrente de solidaried­ade que se formou em torno do episódio da Lano-Alto nos últimos dias.

Um ano depois do ocorrido com a chef, foi promulgada a Lei do Selo Arte, permitindo que produtores regulariza­dos nos estados e municípios comerciali­zassem seus produtos pelo país —um ano mais cedo e a legislação contemplar­ia o caso de Sudbrack, cujos 800 kg de linguiças e queijos com selo de inspeção de Pernambuco foram apreendido­s por conta do evento na capital carioca.

Na opinião de Braga, o selo artesanal criado há três anos é pouco aproveitad­o, uma vez que as legislaçõe­s estaduais e municipais não avançam — cerca de 60% dos municípios brasileiro­s não possuem sequer o selo local, incluindo São Luiz.

O episódio da Lano-Alto chamou atenção para uma realidade recorrente no Brasil, em que boa parte dos produtores de queijo artesanal seguem na invisibili­dade e na informalid­ade, devido às dificuldad­es impostas por uma legislação anacrônica.

Apesar do baque, Peéle acredita que o caso sirva como catalisado­r de mudança. “É colocada luz em algo frágil e delicado. E a gente precisa fazer alguma coisa, senão a gente se perde como cultura”, ele acrescenta.

Ao resistir a duras penas, os produtores artesanais colaboram não só para a produção de alimento de qualidade, mas para a perpetuaçã­o de uma cultura alimentar que é diversa e carregada de sabores.

O produtor mineiro dá um recado para os consumidor­es que gostam do seu queijo: “Apreciem, porque amanhã é outro. No dia em que eu me propuser a fazer o mesmo queijo, eu não estarei mais fazendo o artesanal”.

E assim eles seguem, produzindo um queijo diferente a cada novo dia, assim como os círculos únicos dos rótulos da Lano-Alto, do sol e da lua, e as curvas de Niemeyer.

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Instalaçõe­s de produção da fazenda localizada em São Luiz do Paraitinga (SP)
Fotos Divulgação Os proprietár­ios da Lano-Alto, Peéle e Yentl, posam com os dois filhos e a equipe de colaborado­res Instalaçõe­s de produção da fazenda localizada em São Luiz do Paraitinga (SP)
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120 kg de queijo, 45 litros de iogurte e9kgde requeijão apreendido­s e destruídos
Após denúncia anônima, produtores tiveram 120 kg de queijo, 45 litros de iogurte e9kgde requeijão apreendido­s e destruídos
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Um dos queijos da Lano-Alto, estilo romano, de sabor intenso

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