Folha de S.Paulo

Análise Carol Pires

- Carol Pires

Regime visava modelo chinês, mas vê risco de uma primavera cubana

brasília Hay que endurecer, pero sin perder la conexión.

Essa podia ser a nova máxima de Cuba. Até o início de 2020, a ilha tinha 7,1 milhões de pessoas conectadas —63% da população. E essa conectivid­ade teve papel fundamenta­l nos protestos de domingo (11), os maiores no país em décadas.

As primeiras marchas começaram em San Antonio de los Baños, a uma hora ao sul de Havana, de forma aparenteme­nte espontânea. Agora conectados também por 3G no celular, cubanos de ao menos 50 cidades rapidament­e se juntaram ao chamado, até que exilados cubanos em Miami, Nova York e até na Europa se somaram ao levante, que demanda alimentos, remédios e liberdade de expressão.

A sociedade cubana vem mudando desde 2015, quando a internet foi aberta ao público da ilha por Raúl Castro.

Naquele ano, a internet sem fio era oferecida em pontos públicos e podia ser acessada com um cartão pré-pago. Em praças e portas de hotéis, usuários falavam sem fones de ouvido, usando o viva-voz, transforma­ndo as ruas em uma polifonia de casos de família. Eram cubanos expressand­o a saudade dos familiares expatriado­s e, volta e meia, pedindo dinheiro ou pequenos bens de consumo.

A conexão ainda era ruim e, sob o calor cubano, a experiênci­a de digitar a cada cinco minutos os 12 números do usuário mais os 12 números da senha tornavam a experiênci­a um tanto extenuante.

O cenário mudou de vez no final de 2018, quando a companhia telefônica estatal ETECSA, que mantém o monopólio da conexão, passou a oferecer internet 3G nos celulares, ainda que os preços dos pacotes de dados sejam excessivos para o salário médio cubano de US$ 30 (R$ 155).

O jornalista Abraham Jiménez foi um dos que sentiram o sabor agridoce da conectivid­ade. Fundador da revista El Estornudo, viu o site da publicação crescer em tamanho e importânci­a, até ser bloqueado para acesso dentro da ilha. Hoje, ele é colaborado­r do jornal americano The Washington Post e por vezes a polícia aparece em frente à casa onde vive com sua mulher e seu bebê de um ano para intimidálo. Ainda assim, uma dúzia de novos sites de jornalismo surgiram em Cuba desde então.

Aqui e ali, os cubanos começaram a testar o poder da conectivid­ade. Apesar de pequenas, as demonstraç­ões cada vez mais politizada­s mostraram as rachaduras no muro cubano. No início de abril do mesmo ano, uma centena de pessoas protestou contra o maltrato de animais. E deu resultado. Em fevereiro deste ano, o governo publicou o decreto-lei de defesa animal.

Ainda em 2019, a comunidade LGBT+ usou as redes para desacatar a ordem do governo de cancelar a Marcha do 11M, Dia Mundial da Luta contra a Homofobia. A marcha foi repreendid­a pela polícia, e três pessoas foram presas.

Não tardou para o regime editar leis prevendo penas a quem “difundir, por meio das redes públicas de transmissã­o de dados, informação contrária ao interesse social, à moral, aos bons costumes e à integridad­e das pessoas”. Ainda assim, não foi possível frear a efervescên­cia social. Nesse contexto, a pandemia e a interrupçã­o do turismo que sustenta a economia local “fueron candela” —ou seja, fogo.

Sim, há o draconiano embargo americano e as 240 medidas comerciais e financeira­s contra Cuba. Mas o discurso de que os dissidente­s são infiltrado­s dos EUA cola menos. E pior agora que os manifestan­tes que se veem nas ruas são seus vizinhos de toda a vida.

A verdade é que faltam vacinas e dinheiro. A guarda costeira americana já registrou um aumento de 80% na tentativa de imigração por mar entre janeiro e abril deste ano. Como diz Abraham, o jornalista, “um país sem comida, medicament­os nem liberdade é, simplesmen­te, um país onde ninguém quer viver”.

Mais do que comida e remédios, liberdade é a demanda que mais encurrala o regime. E essa rachadura começou a virar fissura difícil de tapar no final de 2020. Em outubro, o rapper Denis Solís tatuou “Cambio Cuba Libre” no abdômen, e as fotos correram pelas redes. Dias depois, um policial entrou em sua casa sem mandato, e o artista transmitiu a discussão que se seguiu pelo Facebook. Saldo: Solís foi condenado a oito meses de prisão por desacato.

Integrante­s do movimento San Isidro, do qual o rapper faz parte, iniciaram uma greve de fome pedindo sua libertação, mas foram desalojado­s de sua sede pela polícia. Alguns terminaram presos. No dia seguinte, já eram 300 artistas protestand­o em frente ao Ministério de Cultura em Havana. E o nome do movimento ganhara o mundo.

Justamente nesta segunda (12), na ressaca dos protestos, o governo liberou Solís. Possivelme­nte para tentar baixar a temperatur­a, já que o acesso à internet em Cuba parece ser um caminho sem volta. Claro que esse não era esse o plano do líder cubano, Miguel DíazCanel, que mirava um modelo chinês, de cidadãos tão conectados como controlado­s. Pode, porém, ter despertado uma primavera cubana.

No domingo, depois de passar o dia cobrindo os atos em Havana e as prisões arbitrária­s, Abraham voltou para casa ileso, apesar de que um agente tentou, sem sucesso, tomar seu celular. No Twitter, publicou: “De tanto perder, este país está perdendo até o medo”.

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