Com 72 mortos, violência se agrava na África do Sul
Série de saques em lojas se sobrepôs a manifestações políticas após prisão de ex-presidente
Multidões entraram ontem em confronto com a polícia e voltaram a saquear e incendiar lojas na África do Sul —o saldo chegou a 72 mortos e 1.234 presos.
A situação teve início na sexta (9) com atos após a prisão do ex-presidente Jacob Zuma.
bauru (sp) Multidões entraram em confronto com a polícia e voltaram a saquear e incendiar lojas, depósitos e supermercados na África do Sul nesta terça-feira (13). No quinto dia de violência generalizada no país, o saldo chega a 72 mortos e 1.234 presos.
Os atos começaram na sexta (9), com bloqueios de estradas e veículos incendiados, pouco depois de o ex-presidente Jacob Zuma se entregar às autoridades e passar sua primeira noite na cadeia. Ele foi condenado a 15 meses de prisão por desacato à Justiça ao deixar de comparecer a audiências convocadas por uma comissão que investiga casos de corrupção em seu governo.
As manifestações políticas, no entanto, ficaram em segundo plano à medida que uma onda de saques em lojas e de episódios de vandalismo no fim de semana começou a assolar as principais cidades da África do Sul. Os atos se concentram nas províncias de Gauteng —que abriga a capital econômica do país, Joanesburgo— e KwaZulu-Natal, onde Zuma nasceu.
O atual presidente, Cyril Ramaphosa, anunciou na noite desta segunda (12) o envio de tropas para ajudar a polícia, sobrecarregada pelos distúrbios, e “restaurar a ordem”.
“Não há queixa ou qualquer razão política que possa justificar a violência e a destruição”, disse o presidente, para quem o que se vê nas ruas são atos de promoção do caos para encobrir saques e roubos. “O caminho da violência, saques e anarquia só leva a mais violência e devastação.”
A polícia disse ter encontrado dez cadáveres durante a debandada de uma multidão em um shopping de Soweto, na província de Gauteng. Na manhã desta terça-feira, dezenas de mulheres, homens e até crianças invadiram as câmaras frias de uma rede de açougues e fugiram carregando caixas de carne congelada.
A busca por comida indica que a população de Soweto, área que se tornou um dos principais símbolos da desigualdade no país após o fim do regime de segregação racial que vigorou na África do Sul durante quase 50 anos, tem sido uma das mais atingidas pelos efeitos econômicos da pandemia de coronavírus.
Saqueadores também invadiram armazéns e supermercados na cidade de Durban, um dos principais centros de importação e exportação da África do Sul, no leste do país.
Imagens de emissoras locais e vídeos compartilhados em redes sociais mostram multidões enchendo carrinhos com produtos eletrônicos, roupas e outras mercadorias. Dentro das lojas, praticamente destruídas, restavam embalagens descartadas enquanto prateleiras eram esvaziadas.
Vistas aéreas da cidade exibiam grandes nuvens de fumaça subindo de vários depósitos, indicando pontos onde as lojas foram incendiadas.
O número de pessoas mortas pode ser ainda maior, já que os números divulgados por autoridades do governo federal não condizem com os dados regionais. Os premiês de KwaZulu-Natal e Gauteng divulgaram, respectivamente, 26 e 19 mortes em suas províncias, enquanto o ministro da Polícia, Bheki Cele, contabilizou, oficialmente, dez óbitos.
“Nenhuma quantidade de infelicidade ou circunstâncias pessoais de nosso povo dão o direito a alguém de saquear, vandalizar e fazer o que quiser e infringir a lei”, disse Cele, durante discurso em que ecoou a fala de Ramaphosa e anunciou a prisão de 757 pessoas.
Segundo o ministro, o governo agirá para evitar que o agravamento da violência se espalhe mais. Ele também fez um alerta para que as pessoas não “zombem do Estado democrático” da África do Sul.
A ministra da Defesa, Nosiviwe Mapisa-Nqakula, descartou, ao menos por ora, declarar estado de emergência.
Zuma, um dos líderes da luta pelo fim do apartheid ao lado de Nelson Mandela (19182013), foi o presidente mais controverso da África do Sul desde o fim do regime de segregação, em 1994. Seu domínio sobre a dinâmica interna do CNA (Congresso Nacional Africano), partido que comanda o país há 27 anos, foi o que permitiu sua manutenção na cena pública por tanto tempo.
A influência política do exlíder sul-africano, no entanto, diminuiu desde que Ramaphosa, seu vice, o substituiu como chefe da legenda e, posteriormente, presidente do país. Antes de cair, viu alguns membros do CNA e milhares de sul-africanos tomarem as ruas exigindo sua renúncia
Em 2016, foi alvo de um processo de impeachment por ter ignorado a orientação de reembolsar os cofres públicos da África do Sul após usar verbas do Estado, quatro anos antes, para obras em sua residência privada —uma piscina, um anfiteatro e uma área para criação de gado, entre outras.
A ostentação de Zuma, enquanto quase metade dos sulafricanos vivia na pobreza à época, erodiu sua popularidade, o que o levou a ser vaiado, em 2013, por uma multidão que acompanhava uma cerimônia de homenagem a Mandela, com quem o ex-presidente ficou preso por dez anos durante a era do apartheid.
Zuma sobreviveu ao impeachment graças à maioria que o CNA detinha no Parlamento —foram 143 votos a favor e 233 contra. As reiteradas crises, porém, também desgastaram sua imagem dentro do partido. Em 2017, o Tribunal Constitucional concluiu que o CNA falhou em responsabilizar Zuma por seus atos e, provocado pelos partidos de oposição, instruiu a legenda a criar procedimentos para a destituição de um presidente.
Procurando fugir do fantasma de um novo processo de impeachment e dos efeitos de mais um desgaste desse nível na opinião pública e nas urnas, o CNA conseguiu que, sob pressão, Zuma renunciasse à Presidência em 2018 —ele alegou que não havia feito nada de errado e que estava sendo tratado injustamente pelos correligionários.
Desde então, o ex-presidente enfrenta na Justiça acusações de corrupção. Segundo as denúncias, Zuma teria embolsado mais de quatro milhões de rands (R$ 1,4 milhão, na cotação atual) em subornos.