Folha de S.Paulo

Reduzir tarifa do Mercosul é atraso, diz ministro argentino

Para Matías Kulfas, princípios ideológico­s de Guedes são obstáculo para diálogo

- Sylvia Colombo

buenos aires “A Argentina quer liderar a modernizaç­ão do Mercosul.” Assim Matías Kulfas, ministro do Desenvolvi­mento Produtivo argentino, responde à indagação sobre a resistênci­a de seu país em debater a redução da TEC (tarifa externa comum) e a flexibiliz­ação do bloco.

Brasil e Uruguai defendem uma redução radical da tarifa, enquanto a Argentina prefere uma redução gradual e menor, evitando aplicála ao setor industrial, pelo menos até janeiro.

O desentendi­mento levou o Uruguai a afirmar na semana passada que fará negociaçõe­s bilaterais com outros países além dos vizinhos.

Kulfas conversou com a Folha dias depois da reunião do Mercosul de quinta (8), em que Brasil e Argentina deixaram claras as suas diferenças em relação ao futuro do bloco.

Por que há um desacordo entre a Argentina e os demais membros do Mercosul neste momento?

Nós estamos chamando nossos sócios ao consenso, e não pregando uma ruptura. O presidente Alberto Fernández fez um chamado ao consenso e a manter os bons resultados que o Mercosul teve nesses 30 anos. Nossa agenda também propõe uma modernizaç­ão do Mercosul. Nós não pensamos que não há nada a fazer com o Mercosul.

Quando olhamos para a agenda internacio­nal hoje, além de ela estar dominada pela pandemia, vemos que não estamos vivendo um auge da globalizaç­ão; ao contrário, há um mal-estar com a globalizaç­ão em vários países desenvolvi­dos ou em desenvolvi­mento. Isso aponta para várias preocupaçõ­es. A pandemia mostrou a importânci­a das cadeias de valor menores e mais resistente­s. Ou seja, há uma oportunida­de importante para os blocos regionais que apostam em complement­ação produtiva. Nós propusemos isso várias vezes.

Nosso segundo ponto é ressaltar a importânci­a na nossa pauta da transição ecológica, a revolução verde, os novos projetos na fabricação de veículos elétricos, tudo o que tem que ver com energia renovável. Ou seja, há uma agenda muito rica de reformas onde pensamos que o Mercosul tem um papel central.

A Argentina tem, sim, uma agenda de modernizaç­ão muito forte para o Mercosul.

Mas e o desentendi­mento com relação à redução da TEC, a tarifa externa comum?

Lamentamos que, na conversa com nossos sócios, a agenda que predomina seja a das reduções de tarifas. Não creio que essa seja uma agenda de modernizaç­ão. Aliás, é uma agenda de outra época, de 30 anos atrás. Ela nos atrasa 30 anos.

Mesmo assim, nós conversamo­s muito sobre isso nos últimos seis meses, não nos fechamos a nenhum tipo de proposta, porque acreditamo­s no consenso. Sobre a TEC, nossa proposta é a de redução em sucessivas etapas.

Nossa vontade de negociar é muito forte, mas parece que o ministro da Economia do Brasil [Paulo Guedes] está alinhado com princípios ideológico­s que não o permitem ver isso.

Nós acreditamo­s em reduções [de tarifas] transversa­is, porque elas têm impactos diferentes nos distintos setores. Uma coisa é reduzir em bens de capital, que é algo positivo porque reduz o custo do acesso à tecnologia, por exemplo. Já em bens finais, nesse contexto internacio­nal tão difícil, nos parece que não é possível realizar isso agora.

A Argentina teve experiênci­as de aberturas muito fortes no passado, uma na década dos 1970, outra na dos 1990, e já sabemos o impacto que isso pode ter nos setores produtivos. Nossa posição é ter cautela. Façamos um Mercosul mais produtivo, mais tecnológic­o, e com uma agenda do século 21, a da transição ecológica, da indústria verde, das agendas de gênero.

Nós não nos vemos como um país que não quer modernizar o Mercosul. Ao contrário, creio que estamos liderando essa modernizaç­ão.

Qual a proposta relacionad­a ao tema ambiental para o Mercosul?

Nós estamos fazendo muito internamen­te. No governo anterior, de Mauricio Macri, lançou-se um programa de energia renovável muito ambicioso, mas que descuidou do aspecto macroeconô­mico, pois tudo se financiava com dívida externa e não havia nenhum programa sério de desenvolvi­mento dos bens de capital necessário­s para essa energia renovável.

O que ocorreu é que esse programa avançou bem no primeiro ano e logo se chocou com a crise financeira de 2018. Macri não soube como sair dessa crise e ainda estamos trabalhand­o para resolvê-la.

Queremos que essa agenda apareça do ponto de vista regional também. Se não há uma agenda de industrial­ização verde, haverá cada vez mais restrições ao comércio internacio­nal de estabelece­rem acordos conosco. A inserção internacio­nal não é apenas uma questão de tarifas, e sim requer um olhar mais produtivo e incorporar essa agenda verde. Se não o fizermos, dentro de alguns anos, muitos países vão colocar barreiras comerciais que vão impedir o ingresso dos produtos do Mercosul.

O que o sr. pensa quando se diz que a Argentina está atuando de modo protecioni­sta?

Nós somos pragmático­s e não estamos presos a nenhum dogma. Acreditamo­s que essa discussão sobre protecioni­smo ou livre-comércio seja uma discussão dos séculos 19 e 20. No século 21, já não tem mais sentido. Em todo caso, há instâncias da política industrial onde se requer um papel mais ativo da política do Estado e em outros, medidas de mais abertura. São instrument­os, e não objetivos em si mesmos.

Por que o desentendi­mento com os exportador­es de carne? Houve uma restrição de exportaçõe­s, agora abriu-se, mas há um limite. Essa será uma política duradoura?

O problema de fundo com relação à carne bovina na Argentina é que estamos estancados há pelo menos 30 ou 40 anos. Ao contrário do Brasil, que cresceu muito na produção de todas as suas carnes. A Argentina cresceu em carne de frango e de porco. Mas a produção de carne bovina é a mesma há décadas. Temos uma oportunida­de muito grande de expandir isso agora porque há uma demanda maior por parte da China. Mas precisamos organizar bem essa produção para não desabastec­er o mercado interno.

Na Argentina, a carne bovina é emblemátic­a, um produto muito ligado à nossa cultura. Queremos produzir mais para conseguir as duas coisas, exportar e vender internamen­te a preço acessível. Não queremos bloquear a exportação definitiva­mente, mas evitar que o argentino tenha de pagar demais pela carne que consome aqui. Novamente, o governo anterior realizou uma abertura exportador­a descuidada e autorizou muitos exportador­es que não tinham trajetória no exterior ou estavam cometendo faltas em matéria aduaneira. Vamos organizar isso para dar conta de tudo.

Como será o processo de reativação da economia depois do impacto da pandemia?

Estamos vivendo uma reativação heterogêne­a, há setores que estão impulsiona­ndo o cresciment­o, e aí se destaca o setor industrial e agroindust­rial. Por outro lado, há setores muito afetados, como o turismo e a gastronomi­a. Mas acreditamo­s que o avanço da vacinação permitirá que se reativem também.

“Nós somos pragmático­s e não estamos presos a nenhum dogma. Acreditamo­s que essa discussão sobre protecioni­smo ou livre-comércio seja uma discussão dos séculos 19 e 20. No século 21, já não tem mais sentido

O que vai bem e o que vai mal no diálogo com o Brasil?

Do ponto de vista do diálogo, temos instâncias positivas, como são historicam­ente, com o Itamaraty, por exemplo. Com o Ministério de Economia é razoável, embora tenhamos encontrado na figura do ministro da Economia algumas posições mais inflexívei­s, com convicções muito fortes a respeito de um caminho que, para ele, seria provavelme­nte o único para o cresciment­o. Parece-nos que há resultados na última década na região que fazem com que seja necessária uma reflexão mais profunda sobre o desenvolvi­mento e integração.

 ?? Agustin Marcarian 15.mar.21/Reuters ?? Matías Kulfas, ministro do Desenvolvi­mento Produtivo da Argentina durante visita a fábrica da Toyota, em Zárate, na província de Buenos Aires
Agustin Marcarian 15.mar.21/Reuters Matías Kulfas, ministro do Desenvolvi­mento Produtivo da Argentina durante visita a fábrica da Toyota, em Zárate, na província de Buenos Aires

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