Folha de S.Paulo

Ladrão de vacinas é ladrão de vidas

Governo sabotou a saída segura que poderia transforma­r a Covid em uma gripe

- Atila Iamarino Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universida­de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

Agora que a CPI mostrou como e por que as vacinas contra a Covid-19 foram negadas, é hora de avaliar do que fomos privados.

Com quase 2 bilhões de doses de vacinas aplicadas pelo mundo, questões fundamenta­is estão bem claras.

Tem a proteção contra casos graves. As internaçõe­s por Covid em hospitais brasileiro­s vêm caindo muito mais entre os mais velhos e mais vacinados, enquanto o vírus continua circulando entre os mais novos.

Nos EUA, mesmo em estados onde a vacinação ainda vai muito devagar e os casos sobem vertiginos­amente, a grande maioria dos internados (95%) não tomou nem uma dose de vacina. Em Israel, onde mais de 85% da população adulta se vacinou, mais da metade dos casos se concentram entre quem tem 19 anos ou menos.

Também tem a proteção contra a morte por Covid-19. Segundo os dados do grupo Infogripe, da Fiocruz, no último mês, as mortes entre quem tem menos de 60 anos de idade ainda eram de duas a três vezes piores do que no pior momento de 2020. Já entre quem tem mais de 70 anos, o grupo mais vacinado, os números foram comparávei­s ao melhor momento do ano passado. É com essa combinação das duas tendências, a queda dos números entre os mais velhos e a estabiliza­ção entre mais novos, que vemos a situação do Brasil melhorar —para quem se vacinou.

Mas a pergunta que a maioria das pessoas tem é sobre a proteção contra contrair e transmitir o coronavíru­s. Se as vacinas forem muito boas em prevenir até a transmissã­o, estaremos bem mais próximos de uma vida como em 2019 depois de a maior parte do mundo ser vacinada.

Os estudos que medem diretament­e a transmissã­o entre vacinados ainda estão em andamento. Por enquanto, dependemos de medidas indiretas. Em Israel, pesquisado­res encontrara­m quantidade­s quase cinco vezes menores de vírus no corpo de vacinados que acabaram contraindo o coronavíru­s. Com isso, é bem provável que essas pessoas transmitam menos, o que o Reino Unido pode corroborar. Lá, com o acompanham­ento de mais de 1 milhão de vacinados com AstraZenec­a, Pfizer e Moderna entre dezembro de 2020 e maio de 2021, viu-se que aqueles que pegaram coronavíru­s acabaram transmitin­do a doença para menos da metade dos familiares em relação a quem não se vacinou.

Com mais vacinas, poderíamos evitar até 80% das mortes ocorridas neste ano, mais de 250 mil até aqui, de acordo com um estudo que já citei por aqui. O Brasil teria menos hospitaliz­ações e menos contágio. Vacinados que pegassem o coronavíru­s transmitir­iam menos para seus contatos e eles não transmitir­iam para outros —um efeito cascata que evitaria parte dos mais de 11,4 milhões de casos de Covid registrado­s só em 2021. Eles eles, há mais de 1 milhão de pessoas que devem carregar sequelas na forma de Covid longa, com fadiga incapacita­nte, problemas neurológic­os, complicaçõ­es cardíacas ou pulmonares, dores musculares e nas articulaçõ­es e outros sintomas que afetam indefinida­mente mesmo quem não foi internado. São pessoas que não perderam a vida, mas perderam a vida saudável pela falta de vacinas.

O estudo de vacinados no Reino Unido viu que vacinados que pegaram o coronavíru­s tiveram sintomas mais leves e mais curtos, com bem menos chances de terem Covid longa. O único sintoma mais comum entre imunizados foi o espirro.

Ou seja, enquanto o governo federal ignorava ofertas de vacinas legítimas do Instituto Butantan, da OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde) e da Pfizer, para favorecer cambistas de vacinas incertas, também sabotava a única saída segura que poderia transforma­r a Covid em uma gripe.

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