Folha de S.Paulo

Não é sobre liberdade

Brasileiro­s importam retórica enviesada para defender posse e porte de armas

- Ilona Szabó de Carvalho Empreended­ora cívica, mestre em estudos internacio­nais pela Universida­de de Uppsala (Suécia). É autora de “A Defesa do Espaço Cívico”

“Não é sobre armas, é sobre liberdade”. Esse foi o mote da convocação de uma manifestaç­ão pró-armas, realizada na sexta-feira passada (9) em Brasília. Além de desafiar as restrições da pandemia, o ato também foi uma defesa implícita do presidente Bolsonaro, do voto impresso e de sua candidatur­a nas próximas eleições de 2022.

A associação entre armas e liberdade, contudo, não é nova. É uma exportação dos Estados Unidos, amplamente utilizada pelos grupos pró-armas estadunide­nses como a National Rifle Associatio­n (NRA), e que encontrou o amplificad­or perfeito no governo Bolsonaro. O lobby das armas dos EUA construiu essa narrativa nas últimas décadas como um meio de vender mais armas de fogo.

Lá, eles apelam para o texto da Segunda Emenda da Constituiç­ão dos Estados Unidos, adotada em um contexto histórico do século 18 em que estados americanos independen­tes tinham preocupaçã­o com possíveis ameaças. Ela foi uma construção legal exclusivam­ente americana, projetada para permitir que grupos de cidadãos se defendesse­m contra uma ocupação.

Durante muitos anos, a Segunda Emenda impediu que autoridade­s federais ou estaduais avançassem em leis que controlass­em o acesso a armas no país. Em 1939, a Suprema Corte americana entendeu que o Congresso poderia proibir a posse de determinad­os tipos de armas. Mais recentemen­te, o presidente Biden anunciou um conjunto de medidas para combater a violência armada, afirmando que o país vive uma epidemia de violência.

Os Estados Unidos desenvolve­ram leis muito peculiares e incomuns com relação a armas de fogo: não há qualquer outro país no mundo onde a propriedad­e de armas seja interpreta­da como um direito. Há evidências empíricas consideráv­eis de que o afrouxamen­to das leis e dos controles sobre armas contribuem para níveis mais altos de violência armada —o que explica por que os EUA são um ponto fora da curva em relação a mortes por armas de fogo dentre os países desenvolvi­dos, com uma taxa de mortes violentas por armas quase cem vezes maior do que a do Reino Unido.

Apesar da grande mobilizaçã­o da sociedade civil e da luta pelo avanço dos controles de acesso e circulação de armas e munições nos EUA, a direita norte-americana cedeu sua posição sobre as armas de fogo essencialm­ente à NRA, que tem uma influência extremamen­te poderosa e danosa no posicionam­ento político.

Portanto, os defensores brasileiro­s das armas estão importando uma retórica enviesada e desconecta­da de sua própria história. Isso é perigoso e enganoso. A importação brasileira dessa narrativa de armas como sinônimo de liberdade não só exclui a intensa luta da sociedade civil brasileira e de diferentes governos para avançar em uma política de controle responsáve­l de armas e munições no Brasil. Ela também ignora a realidade do Brasil como campeão em números absolutos de homicídios por armas de fogo globalment­e, e todos os dados sobre a importânci­a do controle de armas e munições na redução de diferentes formas de violência e da criminalid­ade violenta.

Em nenhum lugar do mundo, armar a população evitou desvios de armas e munições para a ilegalidad­e, desarmou a criminalid­ade e tornou um país mais seguro. Não há evidência alguma que nos mostre que mais armas nas mãos dos cidadãos garanta os direitos de toda a população.

Para reduzir a violência armada e enfraquece­r a atuação de grupos criminosos no país, nossa prioridade deve ser a reversão urgente das medidas do governo federal que agravaram o descontrol­e de armas e munições no país. Não há atalhos para a garantia da nossa segurança e da nossa democracia —e tampouco da nossa liberdade.

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