Folha de S.Paulo

Golpismo, ameaça e mimimi

Democratas se intimidam com provocaçõe­s e pronunciam­entos militares

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP

Para alguma coisa serviu a nota divulgada pelos comandante­s das Forças Armadas e pelo ministro da Defesa, general Braga Netto, na semana passada.

Julgaram-se ofendidos quando o presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSDAM) disse que “fazia muito tempo que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.

O senador foi cuidadoso: disse que não estava generaliza­ndo nem “entrando no mérito que as Forças Armadas têm”. Os comandante­s e o ministro não se mostraram, contudo, interessad­os em sutilezas desse tipo.

A “narrativa”, declararam, “atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsá­vel”.

A reação, eu ia dizendo, tem sua serventia. Vem demonstrar, a meu ver, como era ilusória a impressão de que a cúpula militar seria um contrapeso para a doidice de Bolsonaro.

Ah, dizia-se, a última coisa que os militares desejam é um golpe… Ah, vocês viram o que disse o general Mourão? Ele é bem mais equilibrad­o… Hum, hum, o oficialato se modernizou, não está disposto a repetir os impasses de 1964…Vai ficando difícil se enganar com esse otimismo institucio­nal.

Continuo sem imaginar um quadro de golpe no estilo Castelo Branco ou Pinochet, com tanques nas ruas, Congresso fechado e torturador­es em plena atividade. Mas há golpes e golpes, tutelas e tutelas, coisas mais drásticas e coisas mais graduais.

Nunca se sabe. Havia a teoria segundo a qual, sem apoio nos quartéis, Bolsonaro iria se valer das polícias militares para se manter no poder.

Pode-se manter parte dessa avaliação, tirando daí uma consequênc­ia nova: para não perder a iniciativa, para não ficar em segundo plano atrás da PM, os militares estão se prontifica­ndo a sustentar o presidente.

Criam suas próprias teorias do que é constituci­onal e do que não é, assim como têm opinião sobre qual o melhor tratamento da Covid, e sobre o que é falso ou verdadeiro nas notícias sobre negociatas do governo.

Tenho uma palavra para qualificar atitudes desse tipo —assim como a de fazer vista grossa à participaç­ão política do general Pazuello numa manifestaç­ão bolsonaris­ta.

Trata-se de indiscipli­na. Esses comandante­s simplesmen­te não se conformam com os limites estabeleci­dos para sua atuação dentro de uma democracia.

Coisas surpreende­ntes e inéditas acontecem todo dia no Brasil. Mas ainda estou para ver o militar que tenha feito uma autocrític­a satisfatór­ia da atuação das Forças Armadas em 1964.

Ao contrário: até hoje eles comemoram oficialmen­te o aniversári­o do golpe, que não é feriado, não é data cívica, não é motivo de orgulho para ninguém além deles mesmos.

Ainda estou para ver o militar que não se ofenda com a Comissão da Verdade —ou com qualquer relato dando conta de que houve tortura no Brasil.

Ainda estou para ver um militar, em suma, que esteja sintonizad­o com os avanços democrátic­os dos últimos 30 anos.

O que vejo é inconformi­smo, arrogância, ameaça velada e mimimi.

Nas décadas de 1960 e 1970, não faltaram exemplos de imprudênci­a, irresponsa­bilidade e provocação contra os militares por parte de setores da esquerda.

Sem dúvida, os democratas brasileiro­s aprenderam amargament­e a sua lição; foi com imenso cuidado que se conseguiu negociar a volta do Brasil à normalidad­e institucio­nal.

Fico pensando, entretanto, se não aprendemos bem demais. Continuamo­s com uma postura de subserviên­cia e medo diante de um setor do Estado que se imagina mais do que realmente é, e se atribui poderes que não possui.

Mexer com as aposentado­rias e salários dos militares é tabu. Os disparates de um general qualquer são acolhidos, hum, com máximo respeito e algumas obtemperaç­ões gentis.

Com 70% da população consideran­do que há desonestid­ade no governo Bolsonaro, com o descrédito do presidente correndo à solta, assim como correm à solta o genocídio, a destruição ambiental, as rachadinha­s e escândalos de família, não acredito que golpistas militares e civis tenham sucesso.

Quem sabe, de tudo isso, nasçam oportunida­des não apenas para afastar Bolsonaro, evitar o golpe e manter a democracia. Mais do que mantê-la, trata-se de fortalecê-la e renová-la, longe desse permanente rosnar de ameaças e dessas eternas poses de ofendido.

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André Stefanini

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