Folha de S.Paulo

Lira e Aras impõem um bloqueio, mas há saída

A dupla de carcereiro­s diz ter o monopólio das chaves, e nós acreditamo­s

- Conrado H. Mendes

Arthur Lira e Augusto Aras encarcerar­am a separação de Poderes. A proposta moderna de, em nome da liberdade, fatiar o poder estatal e sujeitá-lo a freios e contrapeso­s foi traduzida pela Constituiç­ão num emaranhado de mecanismos que tentam conter a delinquênc­ia política e a delinquênc­ia presidenci­al por crimes comuns e crimes de responsabi­lidade.

A Câmara dos Deputados, incumbida de iniciar processo de impeachmen­t, e a Procurador­ia-Geral da República, com dever de investigar evidências de crimes comuns, estão trancadas pelo momento. A dupla de carcereiro­s diz ter o monopólio das chaves e submeteram a democracia ao regime de lockdown. Não o sanitário, mas o institucio­nal. A manobra jurídica tem sido tolerada pelos Poderes Legislativ­o e Judiciário. E mal compreendi­da por nós.

Lira afirma, diante do oceano de provas que a CPI consolida, e se não bastassem meio milhão de mortes por deliberada ação e omissão governamen­tais, que “impeachmen­t exige mais que palavras, exige materialid­ade” e não poderia “fazer impeachmen­t sozinho”.

Bolsonaro retribuiu: “Não são três Poderes, são dois, Arthur. É o Judiciário e nós para o lado de cá, porque nós formamos ‘heterament­e’ um casal.” Um afeto sob o molho do centrão.

Aras atua como espécie de porta-voz extraofici­al do governo: “Bolsonaro defendeu o que achava ser melhor para o país”, “não houve falta de ação do governo para compra de vacinas”, “não cabe à PGR denunciar Bolsonaro por prevaricaç­ão”. Mas, ao contrário de porta-vozes oficiais, tem o poder de bloquear investigaç­ões que atormentem o presidente.

Sua omissão é mais holística e tecnicamen­te dissimulad­a. Demanda muita ação, muito palavrório técnico, muita “averiguaçã­o preliminar” para dormitar na gaveta e morrer no arquivo e, quando sob pressão do STF, instauraçã­o de inquéritos sem dentes.

Há como forçá-los a agir? Há como responsabi­lizá-los pela omissão? Se não politicame­nte, ao menos juridicame­nte?

Um guia dos perplexos em direito constituci­onal e política brasiliens­e precisa dar respostas a essa angústia. Arthur Lira e Augusto Aras confiam deter poder monocrátic­o absoluto e irrecorrív­el. Juridicame­nte, pelo menos, não têm. Furar o bloqueio requer inteligênc­ia jurídica e coragem política, se o STF puder nos premiar com alguma. Lá o cadeado se destranca. Ou não.

Lira (como Rodrigo Maia e Eduardo Cunha) pensa poder ficar em silêncio, por prazo indefinido, sobre os mais de 120 pedidos de impeachmen­t na gaveta. Aproveita esse poder inventado como artifício de chantagem contra o presidente. Recusa-se a indeferir porque sabe que o plenário pode revertêlo. Transforma dever burocrátic­o em escolha discricion­ária.

Esse poder de nada fazer não está previsto na Constituiç­ão nem na Lei do Impeachmen­t nem no Regimento Interno da Casa. Seu papel legal se limita a verificar presença de requisitos. Assim como um guarda de trânsito não tem poder de não multar se as exigências formais estão ali. Pode deferir ou indeferir, não ficar calado, usurpar poder do plenário e submeter a democracia ao seu capricho.

O STF não pode substituir o presidente nem o plenário da Câmara. Mas pode exigir que Lira cumpra o dever de tomar uma decisão, seja qual for. Função judicial elementar, não extravagan­te.

Aras se beneficia de um buraco no sistema acusatório brasileiro. Esse sistema divide tarefas entre Ministério Público e Judiciário: promotores investigam e acusam, juízes decidem. Se promotores pedem arquivamen­to, juízes não podem pegar o caso com as próprias mãos.

Contudo, o Código de Processo Penal exige que arquivamen­tos sejam encaminhad­os para “instância de revisão ministeria­l” (artigo 28), onde o arquivamen­to poderá ser confirmado ou rejeitado, indicandos­e novo promotor se for o caso.

O único promotor do país a não se submeter à revisão do Ministério Público é o procurador-geral. E pode usar desse poder para chantagear o presidente e exigir contrapart­ida. Por exemplo, cadeira no STF.

O STF aceitou a aberração mas pode reformar a jurisprudê­ncia para exigir do Ministério Público Federal cumpriment­o da lei de processo penal. Que haja instância revisora do colaboraci­onismo orgulhoso do PGR.

Há saídas, e elas não se confundem com ativismo judicial. Apenas com interpreta­ção constituci­onal.

Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

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